PELE DE CORDEIRO(*)
Mariazinha era o “doce de coco” da família. Um mimo. Uma graça. Todos a adoravam. Crescera entre viagens de sua família para o continente africano, onde seu pai trabalhava como mecânico, para uma grande firma brasileira que vencera a concorrência para a construção de estradas. Cultura diferente, desde a fala dos dialetos até costumes familiares básicos. Prematuramente aprendera a balbuciar e depois a falar algumas palavras em francês, língua oficial do país de terceiro mundo.
Hoje, com seus dezenove aninhos, já cursando a universidade, sabe coisas que muitos jovens conterrâneos ainda sonham em aprender e conhecer. Docinho, amorzinho, filhinha e outros diminutivos eram carinhosamente chamados por seus genitores, parentes e amigos, dando demonstração de toda a ternura que tinham para com aquela pérola juvenil. O pai da beldade tomava conta como um “leão de chácara”. Turro e sabedor das maldades do mundo dizia defender a filha com “unhas e dentes” contra os garanhões de todos os lugares.
O tempo passara para todos, menos para os pais da moça, que ainda a via pura e cheia de graça. Não conseguiam ver que aquele “docinho” crescera e tornara uma mulher. Uma mulher que nos olhares dos outros poderia ser uma deusa grega ou ninfa da era clássica. Nada ficaria a dever se comparada à beleza de Afrodite.
A inteligência apossara rapidamente da filha que sabia cativar seus pais. Sempre solícita, aceitava as advertências paternas quando saia com as amigas para um “happy hour” ou simples passeios ao cair da noite. Para eles, barzinhos, discotecas e boates não fazem parte da vida de uma jovem de família. Ainda mais de uma família interiorana, religiosa e temente a Deus.
Um dia, como um “estalo de Vieira”, a fonte de modernidade chegou àquela casa. Abençoada pelos deuses que abriram a cabeça de seus pais, ou melhor, do pai, que defendia como guardião romano à “inocência” da filha, ele aceitou com certa restrição, em nome da ciência e do desenvolvimento intelectual, que seu docinho fosse morar só e na cidade vizinha, para ficar próxima ao ambiente universitário e assim adquirir maturidade, responsabilidade e aprendizado qualificado. Para tal, providenciou o aluguel de um pequeno, mas confortável apartamento, onde sua pérola pudesse instalar e morar.
Um estágio numa firma de engenharia, ajeitado providencialmente, deu ares de respeitabilidade para as más línguas.
Mariazinha sentiu-se uma deusa no Olimpo.
Demonstrando uma esperteza jamais vista, organizou-se e rapidamente tratou de entrar em contato com seu namorado de sua terra natal. O rapaz não se fez de rogado. Imediatamente foi ao encontro da amada. Como descreveu o romântico Alencar, a “virgem dos lábios de mel” estava a sua espera. O amor florescera rapidamente. Amavam-se ardentemente. Os dias passavam e a rotina começou a tomar força. O mancebo sentindo-se sufocado pela demonstração de posse da amada, saiu de mansinho com a desculpa de “estava pegando no seu pé”.
A donzela não se importou. Aprendeu. Foi a luta. Estudou, trabalhou e fez contatos. Conheceu gente importante. Nas horas de folga lia autores famosos. Releu o realista Machado de Assis e sentiu-se como a Capitu de “Dom Casmurro”. Depois descobriu a Helena que adormecia dentro de si ao ler o naturalismo de Júlio Ribeiro em “A Carne”.
Sentindo-se madura e responsável quis rebatizar-se com outro nome. Tinha adquirido uma outra personalidade. Um nome pomposo para ser bem aceita e que incarnasse a nova mulher que nascera para ser feliz. Quis combinar o nome com as ações e interpretações que passaria a compor a nova Mariazinha. Pensou e criou Jénnefer. Transformou-se numa fêmea ardente que estava escondida sob uma pele adormecida. A parti daí passou a acreditar firmemente que estava possuída pelo espírito da Helena de Júlio Ribeiro com o nome de Jénnefer.
À noite, no aconchego da cama, relia e sentia as mesmas sensações das páginas escritas pelo escritor realista. Via-a nas mesmas situações. Vibrava e chegava ao orgasmo ao reler as cenas do touro copulando no pasto da fazenda.
Tornara sensual, exuberante e conseqüentemente desejada.
À noite saia para encontros devidamente marcados. Muitos a comparavam a Gisele, a espiã nua da maioria dos homens maduros de hoje que guardam recordações nos livrinhos de bolso comprados nas bancas de jornal dos anos 60/70. Jénnefer, na verdade, virara a encarnação do pecado. O pecado de todos nós. Sua sensualidade deixava boquiabertos todos que freqüentavam a noite da cidade universitária. Emissários da capital apareciam recheados de “verdinhas” com a missão de levarem Jénnefer. Sempre pronta, educada e cada vez mais bela aceitara de certa feita acompanhar um cavalheiro vindo, diziam, do “staf” do governo. Era a glória de uma menina do interior que ousara transformar-se para ser feliz.
O emissário chegara em uma Ferrari vermelha. Ela deslumbrante, vestindo um corpete preto, longo, decote generoso, colante ao seu corpo escultural com uma tiara destacando seu penteado maravilhoso e um colar de pedras preciosas cravadas de esmeraldas foi ao encontro. O motorista, gentilmente, ao abrir a porta do carro foi reconhecido imediatamente... Era o pai de Mariazinha.
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(*) O autor é professor de Literatura, Língua Portuguesa e Produção de textos.
E-mail: edsong@uai.com.br