O QUE REPRESENTA UMA VIDA CENTENÁRIA
Você que adentrou a dita terceira idade, fatalmente vai lembrar-se de algum programa de rádio, pois é, naquele distante início da segunda metade do século passado, se ouvia rádio, e como! Tudo acontecia nas ondas curtas e médias, já que não fora ainda inventada a frequência modulada, a tal da FM.
Os aparelhos eram descomunais para a realidade atual, ofereciam variado cardápio de programas, que iam da locução de jogos direto do Maracanã, a audição de variada gama de músicas, passando por noticiários, incluindo aí, até rádio novelas e seus incríveis efeitos especiais, haja imaginação!
Fazia então grande sucesso, tanto na sua coluna no jornal, como na rádio um programa escrito pelo insuperável Nelson Rodrigues intitulado “A vida é assim”, um relato sem filtros da crua e nua realidade das aventuras e desventuras amorosas, da vida de seus personagens, nos subúrbios da então capital federal.
No texto que segue, vou traçar o perfil de uma pessoa centenária genérica, sem os percalços do cotidiano, que tanto inspirava o grande dramaturgo.
Só para se ter ideia, este personagem que veio ao mundo nos anos 20 do século passado, e, portanto, tinha então a expectativa de viver 40 anos, segundo parâmetros demográficos da época. Como então explicar esse prolongamento de 150% no seu tempo de permanência nessa nova dimensão?
Levando essa referência ao absurdo, seria o equivalente a um sujeito hoje atingir 4,2 metros de altura, levando em consideração, que 1,7 metro era altura média de um adulto cem anos atrás.
Divagações não faltam sobre o que seria uma pessoa completar a jornada de 100 anos, numa sociedade como o nosso, que sequer consegue fornecer apoio social mínimo, aos que apenas superam seis décadas de vida.
O que pode significar para alguém deixar para trás a barreira de dois dígitos de idade. Em linhas gerais, isso implica que esse privilegiado ser humano obviamente dispõe de mecanismos especiais de sobrevivência, que superaram várias provas de resistência ao longo de sua longeva experiência de vida.
Um centenário de existência pode ser traduzido, segundo outros parâmetros de tempo, por exemplo: 1.200 meses, que por sua vez equivalem há 36.500 dias, ou 876.000 horas, que podem também se transformar em 52,6 milhões de minutos. Caramba, o que efetivamente valeu à pena? Quanto tempo foi desperdiçado com baboseiras?
Vale lembrar, que na realidade, este ser resiliente permaneceu praticamente inerte, um terço desse prolongado período. Na década de 40 do século passado, uma pessoa vivia em média 40 anos, se abatermos o tempo de sono, a conta cairia para 27 anos. Portanto, este personagem fictício desfrutaria de menos tempo ativo, do que os 33 anos que nosso protagonista passou dormindo.
Essa pessoa especial tem estatisticamente maior probabilidade de ser mulher, e também de ter passado boa de sua fase idosa como viúva. Mulheres tendem a viver bem mais que homens (diferença de oito anos), e essa certeza se fortalece, quando constatamos, que habitualmente casam, em média, com cinco anos a menos que seus parceiros. Logo, independente da longevidade do casal, ao se pensar em perda de um cônjuge, fatalmente a realidade comprova, são raros os viúvos.
Aqui, entra em cena outra especificidade masculina, estes não demoram muito na condição de viúvo, pois o passar dos anos os tornou dependente da companheira, então, logo conseguem uma substituta para substituir a finada, afinal a oferta de viúvas, supera em muito a demanda de viúvos dentro da realidade brasileira.
Por outro lado, muitas idosas até rejuvenescem com a partida do marido. E fica fácil encontrá-las por aí, seja em animadas aula de canto, ou quem sabe em grupo de hidroginástica ou ainda em recitais de música clássica. O observador astuto, logo constatará que a presença feminina será majoritária em todas atividades, se apurar a visão então, notará que sempre estarão agindo em grupo, independente do ambiente.
Supondo que vinte anos seja o tempo de renovação de uma nova geração, essa senhora genérica ao completar cem anos, indubitavelmente será uma tataravó, fato ainda raro, para essa segunda década do século XXI, mas que se tornará um ato trivial a partir de 2050, claro que se mantivermos as mesmas características de reprodução atuais.
Choque de gerações não vai mais dar conta desse múltiplo conflito futuro, basta imaginar que serão quatro possibilidades de atritos apenas entre gerações hierárquicas, se incorporarmos ao debate três gerações, aí mesmo que a confusão prevalecerá em família.
Ao completar 100 anos, essa pessoa não vai mais importar se levou uma vida adulta agitada, desfrutando ou não da companhia de muitos amigos e conhecidos. Infelizmente todos que conviveram a sua volta, já terão partido para outra dimensão, uns precocemente, outros naturalmente. Então, independente da sua vontade, vai precisar se relacionar com pessoas de uma ou duas gerações abaixo da sua.
Como praticamente ninguém consegue superar tantos percalços ao longo da sua trajetória de vida, esse novo mundo das doenças vai ter tempo de sobra para criar novas ou ampliar o espectro das existentes. Basta pensar, que há quarenta anos, raros eram casos de Parkinson ou Alzheimer, e as neoplasias não desfrutavam do respeito, que hoje atingiram na proporção de óbitos.
Você conheceu por acaso todos avós? Por acaso vivenciou experiências marcantes com cada um deles? Ainda consegue ter boas lembranças dos quatro avós? Pois é, na geração das pessoas que passou hoje dos sessenta anos, quando muito, teve contato restrito com avós, a esperança de vida não permitia esse prazeroso encontro de avós e netos, e se aconteciam, não permitiam muita troca, função da tenra idade de um lado, em confronto com pessoas praticamente no ocaso da vida.
A preocupação maior, para quem estuda este fenômeno, fica por conta de dois fatores de suma importância. O primeiro diz respeito à autonomia, quantas chegarão independentes a essa idade?
A outra pergunta é quase um contraponto à primeira, como vamos conseguir cuidar de uma população com necessidades específicas, ou seja, convivendo com múltiplas comorbidades? Por fim, seria possível uma quebra de paradigma, seguindo, por exemplo, preceitos orientais no trato com a pessoa idosa?