Boteco do Amilton
Amilton era filho de portugueses. Seu pai migrara para o Brasil na época da iminente eclosão da Revolução dos Cravos, quando ainda era garoto, por ele não concordar com o novo regime instaurado em terras lusitanas. Contava com 15 anos de idade, quando seu velho inaugurou um bar próximo à praça da cidade.
Amiltinho, como costumava ser chamado, conduzia com total devoção o antigo negócio que herdara do pai, era como se o velho continuasse lá à espreita, olhando de soslaio cada passo dado pelo seu menino. Cosido ao balcão, administrava com empenho todas as tarefas da casa. Nunca ficava à toa, tanto que os amigos que frequentavam o bar costumavam fazer uma aposta quando se dirigiam ao boteco. “Dessa vez, vamos pegar o Amiltinho entregue à preguiça, sem mover uma palha”. Aposto uma gelada, dizia um. Aposto a nossa conta que não, arriscava outro, que já supunha, dado o histórico anterior, sair vitorioso. Não dava outra. Bastava virar a esquina para ver a cabeça branca dele por detrás do balcão, fazendo com as mãos movimento giratórios, como de praxe, para em vão limpar um copo bacento ou qualquer outra coisa. Às vezes, mesmo sem louça, zanzava de um lado para outro, procurando o que fazer. Não raro, repetia mentalmente as tarefas do dia, só pra se certificar que tudo estava em perfeita ordem no seu bar. Amiltinho, tinha cerca de 60 anos e passara a maior parte do tempo da sua vida naquele ambiente. Tinha gestos comedidos, andar austero e fala sintética. O olhar era um paradoxo, misto de alguém compenetrado na tarefa com dissimulação. O excessivo zelo com que executava as tarefas mais simples, como, por exemplo, passar um pano sobre o balcão ou lavar pratos indicava que o gesto excessivamente demorado não era apenas uma simulação para ouvir melhor a conversa alheia. Trata-se, na verdade, de obsessão. Não pela limpeza, mas pela tarefa interminável. Possuía espírito de Sísifo que o compelia, sem escolha, em direção ao trabalho cíclico e infindável.
Sempre breve, não se prolongava nos argumentos, por completa falta de interesse. Quando, enfim, se interessava por algum assunto que calorosamente era travado pelos frequentadores do bar, emitia uma opinião que quase se assemelhava a uma conclusão binária, de tão enxuta. Orgulhava-se de ser magro de ideias, o que, por sua vez, não importava ser despojado de inteligência. Não, nada disso. Aliás, diria que a inteligência era uma das qualidades que o fazia se gabar. Enquanto os outros empreendiam severos esforços para se sagrar vencedor num debate qualquer, Amiltinho, com serenidade lusitana, fingindo desinteresse, não se importava com uma palavra que era dita, não importando a veemência dos debatedores, que, via de regra, faziam saltar as veias durante o efervescente bate-papo. A certa altura, a coisa esquentava e seus participantes já não observavam mais o contraditório e a réplica. Atropelavam o procedimento, tentando ganhar à fórceps a adesão do adversário, e, naquela altura, dos ouvintes de balcão, à ideia enfaticamente defendida. Quando os ânimos se acirravam e a animosidade se fazia evidente, Amiltinho, tibetanamente, lançava seu parecer. Era batata! Se o ponto de vista não fosse suficiente para convencer os oradores de plantão, lançava uma indagação reflexiva, exortando os litigantes a ponderar mais detidamente sobre um ponto antes não observado. Ou seja, apimentava mais ainda o debate, trazendo uma questão não colocada para mostrar aos debatedores que nenhum dos dois poderia ter razão. Por vezes, sagrava-se, sem querer, vitorioso ao demonstrar a pequenez dos debatedores. Depois, submergia nas profundezas do seu trabalho infinito.
Ps: Amiltinho, ainda está na ativa e continua comandando ferreamente os trabalhos num bar localizado em Araruama/RJ. Dizem que lá existe o melhor melzinho da Região dos Lagos. Apesar dos insistentes pedidos, Amiltinho não entrega a receita nem a procedência da cachaça ouro que usa no drink.