Música? Acho coisa de vagabundo.
A frase, pasmem, foi dita por uma pessoa, que, inconformada com o ensino de música na escola, expressou sua opinião sobre a disciplina. A ideia grassa ainda entre nós, mesmo depois de incontáveis exemplos de que despertar o interesse da criança pela música é relevante para sua formação. Não se refere apenas a saber tocar esse ou aquele instrumento, relaciona-se com sensibilidade, com a capacidade de se sentir tocado na alma, em resumo, de não ser bruto. Como em qualquer arte, a música nos ensina a dialogar com o nosso eu, permitindo o conhecimento de nós mesmos, seja elaborando uma letra, uma melodia; seja ouvindo uma bela canção que atenda nossos reclames internos, que sacie a avidez do espírito. É, portanto, ferramenta de expressão ou autoconhecimento ou, ainda, como preferem alguns, mero entretenimento, diversão ou deleite. Mas seria mesmo coisa de vagabundo?
Até entendo o comentário da irresignada pessoa, apesar de discordar frontalmente. Por muito tempo se associou a música ao ócio, à preguiça, à malandragem. É um pensamento que decorre de máximas do tipo “somente o trabalho enobrece” que relega o ócio a uma categoria subalterna. Domenico di Masi, autor do best seller O Ócio Criativo, ressalta a importância de não fazer nada às vezes, mostrando que a ociosidade pode render frutos. Até hoje, quando estou a divagar e sou instado a lavar a louça, costumo lembrar da renomada frase “como faço para explicar à minha mulher que quando olho pela janela estou trabalhando?”
O modernista Mário de Andrade, na obra Pequena História da Música, leciona que os elementos formais da música, o som e o ritmo, são tão velhos quanto o homem, já que este os possui em si próprio porque os movimentos do coração, o ato de respirar já são elementos rítmicos inatos. Com sua singular habilidade narrativa, traça um panorama cronológico desde a música elementar dos povos primitivos, passando pela evolução ocorrida na antiguidade e pela utilização da arte como expressão sacra, até sua conversão em profana, popular e brasileira. Retrata, assim, a relevância da música na formação dos povos e os fluxos e influxos que sofreu ao longo do tempo.
Na segunda metade do século XIX, A maestrina Chiquinha Gonzaga sofreu o preconceito da sociedade conservadora e da sua própria família por se dedicar à música. Ela lançou as bases do que se denominou mais à frente de música popular, compondo polcas, valsas e outros estilos utilizando elementos não convencionais e, ainda, ritmos afros. Seu pai, que era um monarquista convicto e oficial severo das Forças Armadas, ostentava uma posição nobre na corte e não admitiu tal desonra. Chiquinha viu-se forçada, após seu casamento malograr pelo mesmo motivo, a abrir mão de uma vida luxuosa e cheia de privilégios para seguir o seu destino, obtendo reconhecimento após desbravar um longo, árduo e solitário caminho para se estabelecer como profissional.
Tom Jobim, em entrevista a Marília Gabriela, nos idos dos anos 80, informou que as pessoas passam a vida chamando o músico de vagabundo, vadio, mas, quando, este passa a ganhar um dinheirinho (assim como o poetinha, o maestro gostava dos diminutivos) o músico virava mercenário, venal. Ele, inclusive, recebeu duras críticas quando começou a divulgar seu trabalho nos EUA. Gravou até mesmo um disco com o insuperável Frank Sinatra, o célebre Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, de 1967, álbum de estrondoso sucesso. Tom confidenciou, mais tarde, que Sinatra se incomodara com o fato de o nome do brasileiro ser maior do que o dele na capa do disco, daí o motivo de ter colocado em vez de Frank Sinatra, nome artístico com que assinava todos os discos, o nome de batismo. Nelson Motta, escritor e crítico musical, relata que a pecha de que tinha se vendido ao Tio Sam perseguiu o maestro por boa parte da sua vida, o que confirma o fato de que a tese dele era fruto de uma experiência pessoal.
Inúmeros artistas receberam o rótulo de vadios, antes, é claro, de serem laureados pelo reconhecimento dos seus talentos. São muitos os relatos de dificuldade financeira, preconceito familiar e social e toda sorte de hostilidades, que tiveram de superar para, enfim, conseguir alcançar a almejada estabilidade na carreira. Sim, carreira. Para a surpresa da indignada pessoa, existe uma carreira musical, pois não basta saber dedilhar alguns acordes e entoar alguns versos para se tornar músico. É preciso muito mais. Estudar os fundamentos teóricos, treinar insistentemente, exercitar a autocrítica, ensaiar com afinco, aprimorar a sensibilidade, enfim dedicar-se exaustivamente para, talvez, quem sabe, obter reconhecimento.
Ruy Castro, no livro Chega de Saudade..., afirma que as pessoas mais próximas de João Gilberto o viam não só como excêntrico -antes mesmo do sucesso -, mas também como um cara obsessivo. Ele e o violão eram uma coisa só, uma extensão do seu corpo. Era capaz de ficar horas trancado no banheiro tocando a mesma música, para o desespero do dono da casa, pois não raro, no início da carreira era comum ele se “hospedar” em apartamentos de amigos na zona sul do Rio. Confrontado, respondia serenamente que acústica do banheiro era o melhor lugar para exercitar. Antes desse período, quando ainda morava na Bahia, ficava por horas ouvindo os sons da natureza para traduzir o ritmo para o violão. Era gênio.
Classificar de coisa de vagabundo, é claro, vai depender da ótica de quem julga. A revoltada pessoa deve ter tido sua razão. Talvez uma má experiência pretérita, um despeito mal resolvido, ou simplesmente falta de apuro para as artes em geral. Na sala de aula, seu filho é a única criança que não aprendeu a tocar o instrumento. Às vezes negar a existência de um problema é mais fácil do que tentar resolvê-lo. Dá menos trabalho... e ainda dizem que o músico é que é preguiçoso e vagabundo.