A geografia do corpo

Sobe no ônibus um carteiro, uma mãe diz pra seu filho: " Olha filho, o destino, você não queria falar com o papai Noel? Ele deve saber como é."

Sempre vi uma magia especial nas cartas, no atravessar de uma estória. A carta é a hora íntima, a narrativa entre dois, um pedaço depois outro. É quando a geografia do corpo, tenta, do jeito que dá, diminuir a geografia do mundo.

É curioso, que nas vezes dos desesperos mais agudos e espessos (tipo agora) é quando eu mais escrevo. Sobre o que for. É como tentar se livrar no banho, de um cheiro que nunca sai, ou cair num eterno abrir-olhos na hora da foto, que nunca dá certo. Você vai e faz todo o ritual, arregala gigante os olhos, diz "xisss", sorri, mas quando vê o resultado, o instante congelado foi um quase perfeito, entre um piscar e o outro.

Não foi.

"De olhos muito menos redondos, mais secretos, mais aos risos e na cara prognata uma certa altivez irônica (...)" Enquanto eu escrevia, lembrei desse trecho e fui atrás. Esse é de um conto, "Macacos". Nele, uma mulher é dona de uma macaquinha chamada "Lisette" e percebe que o olhar de doçura do animal, é na verdade, olhar de morte.

O olhar é quase sempre pista, trajetória, um flâneur de dentro pra fora, uma mensagem cifrada. Sempre olho pra onde estão olhando, sempre olho para os olhos. É como se também, assim como as palavras, o olhar fosse um gesto. E você tem que estar bem atento pra conseguir saber das coisas.

O olhar, que nem a carta, é a hora íntima

Abro um pouco difícil, custo em rasgar o papelzinho e vou refazendo em cima da mesa o mosaico embalagem de papel rasgado. Coloco na língua e vou mastigando devagar o chocolate. Quase que na hora lembro de mim novinho. Aqueles chocolatinhos de laranja, retangulares. Desses sempre guardava pro final. Como eu era diferente, como eu era outro quando criança.

Erê.

A manhã já tinha ido embora quando eu acordo. Escuto um burburinho em casa e levanto meio ainda sonho, levanto pra ver. Vou estudando os barulhos pra saber o que é, escuto alguém. Todo mundo está na sala de casa, em volta, margeando-a como numa roda. Ela veste apenas um lençol branco e reclama disso, mas foi o que se achou na hora. Brinca, faz piadas, come doces. Tudo vai numa mistura de atenção e achar graça. No fim, depois de ter falado com todos, feito graça, dado seus avisos, me chama.

Pede que eu chegue mais perto.

Inclino o rosto com um pouco de medo, com um achar curiosíssimo, e então, com as duas mãos cheias de açúcar ainda dos doces, coloca elas sob meu rosto, mãos de cura, de criança. Sinto-as pegajosas, que deixam uma camada em mim.

Eu sei o que significa.

A minha cabeça ainda tava controvérsia. O segurança me olha, eu olho para a vitrine, anoto uma frase "não cansa Deus em brotar do teus poros". Talvez escreva uma poesia depois.

Enfim decido entrar.

Pra além da porta de vidro, vejo um sem número de frascos e produtos. Abro, e o ar é uma miríade de cheiros, como se, a inteira novidade olfativa morasse ali.

Me atende com um ensaiado

"A procura de algo especial, senhor?"

Me pergunto quase rindo, se vai alguém ali querendo o perfume nadinha especial, sem graça, um nada a ver. Eu penso em responder com "Vocês tem algum com cheiro de livro novo?" Mas em vez disso respondo um "Ah, não sei, você deve entender mais que eu".

O moço borrifa um após o outro num papelzinho e me entrega pra sentir

"Não"

E de novo.

"não"

Outra vez.

"não é esse"

Saio de lá desapontado. Não era nenhum daqueles, nunca ia ser

Vou passando, e na interrogação de sempre, a moça que vende as coisas me pergunta se eu tô bem. Digo que tô, mas que tô com uma dorzinha de cabeça, ela diz que é a quentura que tá aí, eu digo que é, que tem que se cuidar mesmo, ela diz que a mãe dela tava ruim, de cama.

Já é noite, então dá quase pra ver o olho dela curvar em tristeza depois de falar, e se voltar de novo pra rua. Vai dar tudo certo, vai sim. Digo tentando ser um pouco de fortaleza pra aquele rosto semi-estranho. Pergunta se quero café, digo que aceito e ela começa a contar do pai, que o pai tava ruim, perdeu força numa das pernas, mas que ainda bem, voltou a andar. Que na pandemia era uma escuridão e um vazio vazio, mas passou, passou.

E eu escuto.

E eu escuto

Escutar também é ver.