Primeiro voo

Quando eu era pequeno, logo pela manhã, muito cedo, eu via o meu pai, ao acordar, se arrumar para o trabalho. Ele por vezes fazia a barba e eu observava o movimento. O mundo lá fora começava a acontecer e desde a cozinha propagava pelo ar o aroma do café. Por esses idos, lembro-me de quando estava aprendendo a amarrar os cadarços. Minha mãe, no início, calmamente os amarrava, dava os nós e o laço saía com perfeição. Os meus eram frouxos e desamarravam nos primeiros passos, é emblemático, pois com o passar dos anos haveria de caminhar com os próprios pés.

 

Não importa quanto tempo tenha passado desde então, um laço maior está sempre bem preso, o meu amor por eles.

 

Hoje eu entendo que além do amor, eu sentia uma imensurável sensação de segurança. Meus pais, logo cedo, em um ritual matutino para enfrentar o mundo lá fora, transmitiam calma e eram o meu porto seguro. Às vezes meu pai, a trabalho, viajava de avião e, eu tinha um incompreensível frio na barriga por isso. Aquele monte de ferro e lata rasgando o céu, como pode? A minha compreensão sobre física era tipo “cartilha Caminho Suave” e eu cristalizei precocemente o medo de viajar nessas máquinas pesadas. Resultado, já homem feito, sempre viajei por terra ou água mundo a fora.

 

O tempo passou e as coisas da vida se desenharam como de fato é a vida, estudos, trabalho, viagens, amores e tudo o mais.

 

Ah, os amores! Há uma sinergia cósmica a conspirar a favor de cruzar alguns caminhos.

 

Num desses momentos inusitados e surpreendentes da nossa trajetória pala vida, já com a barba branca, ganhei um presente por demais surpreendente, uma viagem a passeio cujo deslocamento seria por voo. Então veio aquele X tudo de sensações, a surpresa do presente, a gratidão pelo carinho, o desejo de conhecer novos lugares ao lado de uma pessoa por demais querida e o velho e cristalizado medo de viajar de avião. Pois bem, desde Santos Dumont essas máquinas de voar evoluíram bastante, voar é coisa muito segura e a subjetividade do medo é irracional.

 

O inusitado é que eu nunca tive medo de altura (...), mas, esses bichos pesados pendurados no céu sempre me causaram uma estranha ansiedade!

 

Em busca de conforto e segurança rebusquei de forma natural o ritual matutino de outrora e até o aroma do café veio à tona. O mundo está aí para ser degustado, bem como a vida para ser vivida. Dessa forma o excesso de medo é um eterno freio de mão puxado que impede de se seguir adiante. Oras, a vida por si só é o maior presente de todos e o pior medo é o de viver, enfrenta-lo é uma condição vital.

 

Tal como os primeiros nós que dei no cadarço, até que ficassem firmes, entendi que havia passado da hora de dar mais um passo adiante. Amarrei o temor do voo com os fios da racionalidade e dos cálculos matemáticos, me encharquei de pensamentos positivos e boas vibrações e deixei-me envolver pelo prazer do presente, no presente momento de vida. No dia do embarque caprichei no laço e o que restava de medo diluiu na trajetória até o aeroporto.

 

Chegada a derradeira hora, me vi, na rampa de acesso ao avião, eivado de boas lembranças e boas expectativas e foi uma satisfação imensa entrar sem medo naquela máquina.

 

Já lá dentro observei os trios de cadeiras perfiladas à esquerda e à direita, até perder de vista lá nos fundos, todas ocupadas, o nosso acento estava ao lado da asa esquerda. Então, portas fechadas, o bicho taxiou pela pista, ganhou posição na cabeceira, acelerou continuamente e em minutos vi os prédios da cidade se tornarem minúsculas caixinhas.

 

Lá do alto, de dentro da barriga do avião, como é lindo ver as nuvens abaixo dos pés enquanto deslizamos pelo céu.

 

Que deliciosa emoção, profunda gratidão!