Carteirada
CARTEIRADA
O assunto mais badalado da semana sem sombra de dúvida é o da carteirada dada por um membro do Olimpo brasileiro. Há na divisão administrativa da República das Bananas, diversos Olimpos, que variam de acordo com a remuneração, prerrogativas e, claro, influência, mas isso é um assunto que deixo para os especialistas em mitologia pública brasileira.
Quero aproveitar o momento e confessar que, por força das circunstâncias, vali-me da carteirada para obter alguma vantagem. Sim, já dei carteirada. Não uma vez, mas duas vezes. Acho que o momento é propício para expor publicamente e, com isso, me redimir.
Na primeira vez, eu era estudante de graduação de direito. Morava na rua Dr. Borman, no Centro de Niterói. Lá, existe uma figura bem conhecida de todos: Seu Roberto. Seu Roberto era morador de rua, mas não tinha um apelido indigno, pejorativo ou jocoso como costumam ter os moradores de rua, pois assim são chamados pelos outros, que gozam de uma posição acima da deles na camada social. Ele tinha nome e assim era tratado por todos que circulavam por ali. Trabalhava catando papelão e, ao longo do dia, era possível encontrá-lo trabalhando em diversos locais do centro, sempre puxando o burro sem rabo, ora vazio, ora cheio da féria do dia.
Voltava certa vez da faculdade, quando avistei alguns guardas municipais, que, impiedosamente, determinavam que ele se retirasse do local onde sempre dormiu e guardava suas coisas. Era na entrada da Praça do Rink, próximo ao Plaza Shopping. Não notei excesso na abordagem, mas, mesmo assim, fui tomado de um ímpeto que só hoje classificaria de ingênuo. Ao considerar injusta a retirada forçada dele dali, fui movido por uma força estranha que me fez sacar minha carteirinha de graduando em direito, normalmente usada para obter ½ entrada em espetáculos, para impedi-los de cometer o que eu considerava uma atrocidade. Com ela em punho, clamei pela liberação do destituído sujeito, bradando aos quatro ventos que permanência dele no lugar era inofensiva. Do alto de uma tribuna imaginária, eu protestei, vociferei e esbravejei. Nada foi feito. Não adiantou nada. Os guardas se entreolharam por alguns segundos, meio que sem entender, e deram seguimento à remoção.
Na segunda vez, eu estava indo visitar minha mãe em Araruama. No caminho fui abordado por uma blitz da Polícia Rodoviária Federal. O Policial, educadamente, pediu para mostrar os documentos do carro e habilitação. Entreguei a habilitação prontamente. Já o documento do carro... É que eu estava há dois anos sem pagar IPVA. Revirei a mochila para simular uma possível procura pelo documento. Diante da demora, o policial, entediado, observou: “é documento não tem, mas livro tem um monte aí”. Não quero tirar onda de cara que lê muito e tal, mas é que ele realmente disse isso, diante da montoeira de livros que tinha na mochila. Sucedeu que, em razão de não apresentar o licenciamento anual, ele mandou recolher o carro para o temível pátio da Unidade Operacional, onde é comum ver carros, carcomidos pelo esquecimento, clamando pela liberdade.
Fabrícia, atônita, assistia a tudo com surpresa. Estávamos em início de namoro e, por isso, dolosamente omiti dela que não estava em dia com os documentos do carro, senão certamente não iria comigo. Ficou duplamente perplexa, primeiro pelo fato de eu ter ocultado isso dela, depois, em razão da possibilidade de ficar ao léu numa estrada perto de Rio Bonito. Bela maneira de começar uma relação.
“Bota o carro ali dentro”, disse maquinalmente o policial, acostumado a dizer a mesma coisa dezenas de vezes ao dia. Eu falei: “Peraí, seu chefe tá aí?”. Ele não me deu bola e entrou na sala. Fui atrás e, antes que a porta fechasse, entrei na mesma sala. Lá estavam cerca de 04/05 PRF´s. Antes que dissesse qualquer coisa atalhou: “aí, chefe, mandei recolher o carro, mas ele não cumpriu”. Pensei: desgraçado, me jogando logo de cara contra o chefe.
Mas, graças a atitude malevolente, consegui saber quem mandava no lugar. Me aproximei. Silêncio dos demais. Me observam. Boto a mão no bolso. Me analisam. Pego minha carteira. Me julgam. Saco um pequeno documento de identificação funcional. Me censuram. Com ele em punho, argumento:
- Vou confessar uma coisa aqui entre nós... meu IPVA tá atrasado mesmo. Tô na batalha um tempão pra pagar, mas, sabe como é, né...
(mostro a carteira de funcionário estadual da saúde)
...Estado é uma merda. Ainda mais saúde. Maior corrosão do salário, sem aumento há 10 anos, diminuição do poder de compra...
(os policiais se aproximam para ouvir o desenrolar da conversa)
Percebi que havia conseguido fisgar o interesse dos demais pela minha lamúria. Formou-se uma rodinha. Prossegui:
- Por isso que tô na batalha. Tô estudando para conseguir coisa melhor. Não tem esse concurso aí da PRF que tá rolando agora? Maior sacanagem o que fizeram. Vocês viram? Menearam negativamente a cabeça. Ele foi cancelado porque o NCE, que é a mesma banca do concurso que vocês fizeram, vazou a prova. Conclusão: todo mundo que estava estudando foi prejudicado por causa dessa babaquice. Nesse momento, ouço o burburinho de concordância. Bingo!
Papo vai, papo vem. Os caras começam a me perguntar sobre provas, livros, e próximos concursos. Eu simulava interesse no assunto e ia abastecendo eles de informação até esperar o momento certo. Em dada altura, perguntei: “e aí, como ficamos?”
Naquele dia cheguei em Araruama, depois da hora do almoço por causa do pequeno percalço, e botei o carro na garagem da casa de minha mãe. Foi uma carteirada às avessas.
Ps 01: Gustavo, o protagonista da ficção acima narrada, era um mero estudante de direito quando os fatos se sucederam. Fabrícia era então sua namorada. Qualquer semelhança com as iniciais do autor e da sua esposa será mera obra do acaso.
Ps 02:Ficou em primeira pessoa mesmo, porque depois da bronca de Fabrícia, que me censurou, eu tive preguiça de alterar o texto.