A PESADA CARAPAÇA DO ANDARILHO
Ocasionalmente, quando a vertente do Mistério permite que se possa beber e tentar traduzir algumas de suas vertentes de água boa, sinto que cumpro a humilde e penosa condenação terrena.
Desta sorte, convivo, numa espécie de imantação, entre pequenas verdades, a farsa, a fantasia, a deliberada mentira salvadora e o sonho límpido, altruísta, que me permitam recriar o mundo a partir da fortaleza da palavra.
Esse inesperado e inominado momento de reconstrução pessoal me é posto à mesa pelo Absoluto não quando eu o quero e sim quando Ele me chama ao convívio.
Fico muito feliz quando o poema cumpre a sua proposta: refletir sobre o nosso andejar neste plano.
Viver é fácil, porque desafio individuado, no entanto, o conviver é áspero. Servir ao Outro como arauto da Boa Nova poética necessita a interlocução do semelhante. É quando, caracol, saio ao mundo com a casa nas costas e humildes antenas de imperceptíveis células.
Em seus olhos extáticos e extraviados, devido à comoção que se instaura (o poeta-autor sempre desejaria que ela efetivamente se instaurasse) através palavra do semelhante, constrói-se-me a esperança do foco de luz e a certeza de que é possível estar perto, mesmo estando a anos-luz do planeta do qual teria viajado o primitivo gene.
Entre o frio, a fome, a desgraça, o vento sobre os revoltos cabelos é o sopro da vida que lança o sangue no fluxo da maçã na cruz, quando o Cristo afirma a descendência e a palavra é o bolo de Páscoa. Eis-me, então, em comunhão verbal.
Só então me integro inteiro, pronto para a unificação entre o sangue pulsante e a pesada carapaça do andarilho.
A resiliente crença na Poesia nasce, renasce e se renova nas agonias e inquietações postas a nu segundo confluências emocionais nascidas nos interlocutores. A permanência do cajado que protege a minha doida sanidade e suporta o peso das ideias é, portanto, coletiva e intemporal.
Eu, ameba, larva, caramujo, caracol, molusco na armadura, sigo o inexorável itinerário da finitude para além da transmutação física.
Uma lesma dança sobre uma folha verdinha, suarenta de clorofila, porém suja do registro do sangue vivo da passagem do tempo. Dele ela se alimentava todos os dias, em moto-contínuo.
Há mais de dois mil anos, um homem de braços abertos mostrou-se-nos com o rosto ensanguentado. Esse é o relato que ficou no aflito coração dos deserdados daquele tempo.
Hoje, 20 séculos além, madrugada alta na favela do politicamente incorreto, uma criança morreu de bala perdida. Seus miseráveis pais, mergulhados na exclusão social, necessitarão de incontáveis cajados de fortaleza para suportar o trajeto que lhes resta.
MONCKS, Joaquim. O CAOS MORDE A PALAVRA. Obra inédita em livro solo, 2023.
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