Lembranças primárias
Algumas lembranças teimam a não sumir da nossa memória, apesar dos anos. Não sei qual o grau de comprometimento ou de importância em relação a outros momentos, mas algumas permanecem intactas na bagagem de preciosidades que colecionamos durante a nossa vida.
Me lembro com detalhes, era um final de tarde, eu sentada nos joelhos de meu pai, e ele apontando os lápis para eu ir pela primeira vez à escola. Eram lápis usados pelos meus irmãos, alguns já pitocos, mas para mim eram preciosidades. Meu pai, semi analfabeto, contava com orgulho, para alguém sentado num banquinho ao seu lado, o quanto eu era inteligente, pois já sabia escrever meu nome, sem mesmo ter tido uma professora.
A minha mãe preparou uma bacia grande, com água esquentada no fogão à lenha, para me dar um banho no capricho. Lavou meus cabelos com sabão de cinza, enquanto eu ia tirando, com um caco de telha, as piriricas dos pés, acumuladas por andar sempre descalça e com os banhos no rio, que corria ao lado da nossa casa. Era o ano de 1961 e eu estava com 7 anos.
Não me lembro se eu tinha sapatos ou chinelos, mas no dia seguinte, descalça, fui levada pela minha irmã mais velha para a escola. Os cabelos, presos num rabo por um elástico, doíam na raiz, tão puxados que estavam. Na entrada do Grupo Escolar, encontramos a Maria José Marques, amiga da Ema, segurando pela mão a Dalila, sua irmãzinha. Uma outra menininha segurava firme na alça da sacola da Dalila.
Ficamos ali, no canto do pátio, observando o movimento dos alunos mais velhos. O diretor chegou com umas listas e foi cantando o nome dos alunos. As professoras colocavam as filas em ordem pela altura dos alunos. Fui a última da fila, minha magreza e pernas finas me fizeram sentir como uma siriema ao caminhar para a sala de aula. A professora se apresentou: Aniela Morais. Na lousa, com letras redondinhas, o cabeçalho com o nome da escola, a data e o nome completo da professora. Primeira lição do dia: copiar o cabeçalho.
Alguns alunos olhavam assustados para os lados, sem coragem de dizer que não sabiam nem segurar o lápis. Uma delas era minha prima Luiza. Dalila e a amiguinha sentaram juntas do outro lado da sala e só fomos conversar novamente no horário do recreio. Assim que saímos para o pátio, corremos para debaixo de uma árvore para comer o lanche que tínhamos trazido de casa.
Eu tinha um pedaço de bolo de fubá e as duas, algumas bananas bem maduras. Ofereci um bocado de bolo para cada uma e ganhei uma banana da Nilda. Ali formamos um trio inseparável até o último ano do Grupo Escolar.
Nos anos seguintes, dona Idinha, dona Elisiinha, seo Gil, seo Renato. Outros colegas de turma nos acompanharam. Alguns marcaram nossa caminhada. Eu sempre ia a pé para a escola, morava mais perto da cidade, uns quilômetros depois da Vila. Dalila Marques e Nilda Silva, junto com outros irmãos, faziam o trajeto a cavalo, pois moravam além da Serra Amaral. Os contratempos nos afastaram na adolescência. Cada uma pegou um transporte diferente e seguiu o seu caminho.
Os cavalos, a Serra Amaral, a Vilinha, os professores primários, as brincadeiras de roda, a merenda escolar, a recitação de poesias nas festas escolares, os colegas, as boas notas, os livros de histórias infantis ficaram como boas lembranças. Os anos se foram. Mas Dalila e Nilda teimosamente permanecem presentes, nítidas passageiras desta minha viagem.