DE OVELHA NEGRA A SONHO DE CONSUMO
O passar do tempo, nos permite assistir de local privilegiado mudanças em todas as áreas, desde os peculiares usos e costumes, passando pelo mercado de trabalho, em síntese, vivenciamos bruscas mudanças, que gradativamente transformam a sociedade, e de tabela nossa visão de mundo.
Depois de um parágrafo introdutório como esse, um mundo de assuntos podem ser desenvolvidas, mas resolvi trabalhar com um ponto no mínimo curioso, dentro desse guarda chuva de possibilidades.
Vou discorrer sobre a inserção do cidadão português na cultura de uma cidade icônica como o Rio de Janeiro na década de 1960.
Para mostrar o peso lusitano nessa cidade vou me apoiar inicialmente no esporte, no caso o mais popular neste país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, o futebol. Impressiona qualquer leigo saber que duas agremiações, sendo uma de primeira grandeza, ambas localizadas na Zona Norte da cidade e com fortes raízes vinculadas à terrinha, inclusive no nome: Clube de Regatas Vasco da Gama com sede no antigo bairro Imperial de São Cristóvão, local de residência da família real e a insular Portuguesa Futebol Clube.
Para se ter referência, a capital paulista conta apenas com a Associação Portuguesa de Desportos, uma equipe periférica entre paulistanos. Vale aqui lembrar o peso do Palestra Itália, depois rebatizado como Sociedade Esportiva Palmeiras, um peso pesado do futebol brasileiro com raízes italianas.
Revirando o passado no bairro do Jardim Botânico, lembro perfeitamente que representantes da terrinha, mesmo tão longe da Península Ibérica mantinham a tradição de fartos bigodes, uso indiscriminado de tamancos de madeira, que se fixava aos pés por uma faixa de couro, camiseta regata branca e calças pretas de brim garrafeiro.
Esse traje valia tanto para o português da padaria, do açougue ou mesmo de alguns faxineiros de prédios da rua onde eu morava. Já suas esposas, preservavam hábito de se vestir com muita roupa, mesmo no auge do verão carioca, e também de preservar por longos períodos o uso do luto e finalmente os nada sensuais, mas peculiares bigodinhos, que insistiam em não raspar.
Esse grupo normalmente não gozava de boa educação formal, mantinham sotaque carregado e empregavam com frequência expressões do além mar, quando se sentiam à vontade diante de clientes ou mesmo de patrões.
Quando o objeto passa ser o humor, é praticamente impossível não lembrar a série de piadas associadas à peculiar lógica portuguesa, motivo de muita zombaria, a maioria das vezes baseadas em fatos reais.
Conheço muita gente que no passado nunca incluiu em seu roteiro pelo Velho Mundo uma passadinha que seja por Portugal, mas, diga-se de passagem, que o longo período Salazarista contribuiu em muito para o descaso e o atraso do país ibérico.
Quem diria, que passadas algumas décadas, a terrinha tão avacalhada pelo brasileiro, passaria a sonho de consumo, de parcela significativa da população, inclusive aquela com maior poder aquisitivo. E o que não falta hoje são elogios à terrinha, que aproveitou como poucos as benemesses oferecidas para assim facilitar sua inclusão no Mercado Comum Europeu.
Essa preferência brasileira está hoje evidente nas maiores cidades lusitanas, com público diversificado, incluindo de estudante a empresários, passando por aposentado ou mesmo aqueles profissionais que não encontravam emprego por aqui, e bem ou mal conseguiram inserção, mesmo que precária no mercado de trabalho português.
Mesmo entre vizinhos ricos, que não entendiam a Península Ibérica como parte do continente, hoje migram para o Algarve em busca de qualidade de vida, em ambiente mais despojado e agradável, mesmo no inverno. Esse destino tem no segmento idoso sua maior demanda, pois não tem mais resistência para aturar as baixas temperaturas do norte europeu.
Quem seria capaz de adivinhar que bastaria algumas décadas para Portugal deixar o posto de ovelha negra da Europa Ocidental e rapidamente se transmutar em sonho de consumo internacional.