Disposição alvissareira
Acordei relativamente otimista. E isso não é bom. Eu não sou assim, principalmente ao acordar. O motivo da sensação desconheço.
Ontem foi um dia normal, isto é, como os outros, de 24h e muita chatice, com a agravante de ser sexta-feira. A noite, à exceção de um abalroamento lateral com uma mulher (dizem que bonita e solteira para fins de namoro), foi densa e possivelmente profana. Na Mega Sena, não joguei. Se tivesse feito aposta, talvez haveria um indicativo por trás deste otimismo imoderado, na forma de presságio.
Não sei o que me ocorre, porém. Não estou no meu normal. Certeza. Nem em Pasárgada, me parece.
Esta disposição alvissareira que me invade agora, que me convoca a ver apenas o lado bom, honesto e saudável das pessoas e do mundo a meu redor; que traz esta absurda sensação de que o homem talvez tenha salvação; que faz da cidade, apesar de ser cidade, um lugar apreciável para viver e conviver e transitar; esta disposição para enxergar a beleza, o bom, o imaculado por detrás da visível feiura do mundo e das pessoas tem, em mim, um quê de ineditismo.
Não me recordo de ocasião semelhante. Nem quando recebi, depois de vinte e três não, um sim de uma senhorita com quem, à época de minha infância, eu flertava. Que me lembre, aquele foi meu primeiro sim no mundo. Tive, à ocasião, confesso, uma espécie de contentamento doentio, de alegria imensurável, de vitória épica sobre a concorrência e sobre meu pessimismo visceral.
Mas agora é diferente. Não se trata de um sim vindo de quem se ama, embora não seja motivo menor para alegrar-se, para ver o mundo e pessoas com otimismo, com esperança, com amor. Agora já tenho mais de trinta anos, setenta quilos, boletos, responsabilidade civil e criminal por meus atos. Não sou mais e oficialmente uma criança, entristeci bastante. Então é preciso aproveitar esta sensação alvissareira e certamente provisória, e dizer que:
Se, hoje excepcionalmente me pisarem o pé na feira livre de União dos Palmares, se me fecharem no trânsito caótico, se falarem mal do Palmeiras, não esboçarei reação negativa alguma. Serei um cidadão exemplar, cônscio da estranha felicidade alvissareira que me toma, e responderei a meus convivas em forma de sorriso, e abraços, e elogios. Antecipadamente lhes direi que a culpa é integralmente minha; que o dia está lindo, além de ser sábado ensolarado; que Deus é bom, e justo, e que em breve voltará, e estarão findas toda a iniquidade, as injustiças, a fome, as misérias, as guerras no mundo e do mundo. Que seremos todos finalmente muito felizes.
E todos dirão "Amém!", com exceção das crianças, que bradarão apenas e suficientemente: "Amem!".