Mia nona Concheta
Na sua velhice era bem franzina, ombros encurvados, passos lentos. Trazia os cabelos sempre presos um um lenço escuro e vestia-se sempre de preto. Como se vestiam todas as mulheres viúvas, não importando a idade.
Andava sempre cabisbaixa, parecendo conversar com os próprios pés ou com o solo que pisava. Indiferente com o que se passava ao seu redor, caminhava em oração. Orava pelos doentes, pela família que ficara em Pieve Fosciana, Querceta, província de Lucca, muito distante geograficamente, e pela família que formou na América.
Não me lembro dela ter tido amigas para visitar ou receber em casa. Helena Bassoi, tia Maria Bechelli Biagioni, prima Iracema, eram as mais próximas, mas somente para oferecer-lhes ajuda. Quando sabia de alguém acamado ou passando necessidade, lá ia ela quietinha, com uma vasilha de leite ou um embrulho com pães. Não entrava nas casas, perguntava na porta pelo doente, entregava os alimentos e voltava no mesmo silêncio que a levava para a ação solidária.
Tinha um ritual diário, já conhecido pelos moradores de Porangaba. De manhã, saía de casa pela Rua João Rosa de Oliveira carregando o latãozinho com leite, passava pela rua de cima, entrava na igreja, ajoelhava e fazia sua oração. Seguia pela Rua Professor Antônio Freire, parando e fazendo a entrega em determinadas casas. Descia pela rua da loja da dona Maria Amália e voltava pela 4 de Junho. Pegava o pão na padaria do Juarez e voltava para casa.
Logo em seguida, com as vasilhas de leite vazias, no mesmo cadenciamento de passos seguia para a chácara que ficava no início da estrada de Conchas. No caminho ia deixando pães para alguns assistidos e, principalmente, para aqueles que moravam nas casinhas da ponte. Passava por dentro do cemitério para rezar no túmulo, onde está enterrado meu avô Angelo Becheli.
Pouco falava da sua história. O que sabemos, foi através de minha mãe e tias, que cresceram especulando para conhecer a sua origem. Chegou ao Brasil em 1924, trazendo a primeira filha com cinco meses de idade. Viajou dezoito dias num navio cheio de imigrantes em busca da terra prometida, para “fazer a América” e encontrar o marido vindo um ano antes.
Tinha sido noiva na Itália, mas o noivo morreu nas montanhas geladas enfrentando os alemães, durante a Primeira Guerra Mundial. No seu silêncio, guardou um amor eterno pelo noivo italiano, que a guerra impediu de despedir-se. Perderam a guerra e entes queridos. Foi um tempo de fuga, era preciso buscar lugares mais pacíficos para viver. Foi quando conheceu meu avô e juntos sonharam com a possibilidade de encontrar outros parentes que já haviam embarcado para o Brasil.
Despediu-se dos pais e irmãos em 1924. Uma mala, uma imagem da santa protetora, uma filha de cinco meses no colo. Partiu sem esperança de voltar a encontrá-los. Despediu-se de sua terra natal, da sua gente, da sua língua materna. Que coragem, que dor! E a dor dos que ficaram, sabendo que jamais iriam ver esse bebê crescer? Imagino o que deve ter passado pelo coração de todos, pelo coração da mãe que ficou.
Às vezes me pego a chorar ao imaginar a cena e os sentimentos de todos os imigrantes que passaram por essa situação. Mia nona Concheta, uma fortaleza de mulher, nunca reclamou! Se chorou, fez escondido, colocando nos braços de Nossa Senhora do Carmo toda a fé e resignação da sua condição de ser mulher e o dever de acompanhar o marido em qualquer situação.
E assim fez pelo resto da sua existência. Criou cinco filhos, Dina, Olga, Iolanda, Onélia e Leopoldo, quatro nascidos em terra porangabense, além de Clara, falecida bebê. Foi esposa, companheira do trabalho rude na roça, na padaria e no beneficiamento de arroz. Uma vida dedicada aos pobres e à oração.
São muitas lembranças boas da sua paciência e presença na formação dos netos. Palavras aprendidas do seu idioma que nunca esqueceremos, do seu amor pela Itália e a gratidão pela terra brasileira. Chegou ao Brasil com um bebê no colo e hoje carrega uma descendência de oitenta e cinco pessoas.
Concheta Bertoncini Becheli, morreu como um passarinho com 76 anos; bateu asas de volta ao encontro das pessoas queridas depois de 51 anos de afastamento.