A poltrona vazia

A casa de esquina está lá, a sala também, com aquele grande vitrô para se ver o pôr do sol nos finais de tarde e as crianças na entrada e saída do Grupo Escolar. Passou por reformas e pelas mãos dos herdeiros. Tudo na casa lembra o velho avô. Imagino o cheiro do cigarro de palha impregnado nos estofados e as caixinhas de baralho ainda mantidas em cima do aparador à espera dos amigos de toda tarde.

As últimas décadas da vida do querido avô se resumiram em tomar um café, com tranquilidade na varanda, sempre colocado à sua frente pela esposa após o banho matinal, radinho ligado, sem camisa, enquanto contava as últimas da TV assistidas até tarde da noite. Não tinha compromisso com horários, já tinha trabalhado o suficiente para ter uma aposentadoria tranquila.

Com calma, arrumava as sobras de comidas para levar para os porcos e para as galinhas que criava no Rancho. Enchia o Ford 1945 ou o Fusca com os netos para alegria da meninada que aproveitava do avô para empurrar os balanços ou descascar laranjas.

O rancho era o paraíso do avô e dos netos, com vários cachorros, cheio de árvores plantadas por ele e de brinquedos construídos com sucatas que colecionava. Na volta, ia entregando os netos de casa em casa, junto com sacolas das frutas que produzia. Sua paciência com os pequenos era incomum, porém distribuía alguns tapas na mão caso mexessem no rádio do fusca.

Enquanto esperava o almoço, deitado na rede, contava à mulher as proezas e travessuras dos netos. Davam boas risadas. Se o almoço demorava, reclamava como se estivesse muito faminto. Em cima da mesa, desfiava o fumo, cortava as melhores palhas e enchia várias caixinhas com os cigarros feitos para o dia e para oferecer aos amigos que pontualmente chegavam à tarde para as rodadas de baralho.

Havia todo um ritual para o almoço, a salada sempre separada, boa quantidade de carne em outro prato. O vidro de pimenta tinha que estar sempre à sua disposição. A “dona Maria”, depois de cinquenta anos juntos, sabia como agradar o marido. Para o prazer da mulher, muito boa cozinheira, ele comia com gosto. Depois, aquela soneca para fazer a sesta.

Às quatro da tarde, os parceiros eram assíduos, rodeavam a mesa que estava sempre preparada para o carteado, cada um com sua cadeira no mesmo lugar de sempre. À disposição, uma garrafa de café, deixada pela esposa antes de sair para o trabalho. O papo e a jogatina iam até antes da novela das oito, porque a programação da Globo fazia parte da rotina de toda noite.

Na sua poltrona cativa, naquela sala, passava horas não se importando com a chegada de visitas ou dos filhos. Se quisessem conversar com ele, tinham que esperar os intervalos, porque durante a novela e o telejornal era exigido o silêncio.

Um dia, tristemente o avô adoeceu, seus passos ficaram lentos, já não havia a mesma disposição para cuidar do rancho. Os netos, alguns ainda crianças e outros já adolescentes, sentiram que o querido avô estava se despedindo da vida. Já não conseguia comer com o mesmo prazer de antes, mesmo que os seus pratos prediletos fossem preparados pela mulher ou trazidos por uma filha ou nora.

Foi ficando calado, os remédios substituíram os cigarros de palha, o café deixou de ter açúcar. A vida começou a ficar sem sal. O radinho, companheiro de toda uma vida, deixou a programação para depois. A TV foi desligada mais cedo.

Os amigos fiéis continuaram as visitas diárias, mas se despediam, mesmo antes de começar o embaralhar das cartas. As partidas ficaram sem começo e sem fim. O Bicheiro se despediu.

Ainda hoje, as mangueiras da estrada Porangaba/Bofete florescem e dão frutos lembrando das mãos daquele que as plantou. Parte do Rancho sobrevive circundado pela cidade. A poltrona da sala está vazia, mas a figura do pai e do avô permanece viva no coração daqueles que o amaram!

Estela Maria de Oliveira
Enviado por Estela Maria de Oliveira em 29/10/2023
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