Loteria popular
Gutemberg Armando Diniz Guerra
Engenheiro agrônomo
A presença de cambistas vendendo jogo do bicho é um fato comum em todas as nossas cidades, distritos, vilas, povoados. A visibilidade anunciada com cartazes, símbolos próprios com as marcas e nomes dos bicheiros, os proprietários endinheirados de cada rede, com posicionamento geográfico definido, imposto muitas vezes à força da bala e da truculência. O grau de confiança que os apostadores neles depositam é de uma fidelidade admirável, maior até de que a fé que cada um deposita em seus palpites, esperando ganhar uns trocados baseados nos sonhos, coincidências e inspirações as mais diversas.
Eu nunca apurei para compreender como funcionava essa loteria e sempre mantive distância das bancas e mais ainda dos bicheiros, embora alguns sejam muito conhecidos e reconhecidos como homens com notoriedade confirmada pelo voto e pelas afinidades com atividades do agrado popular como o futebol, a música e a religião.
Embora previsto como crime de contravenção na legislação brasileira no artigo 50 do Decreto lei de número 3688/1941, determinando penalidade tanto para quem promova como para quem pratica jogos de azar, o Estado se coloca contraditoriamente promovendo as loterias e sendo conivente com essa modalidade e outras previstas na mesma lei. Há uma gritante distância entre as regras estabelecidas pelos governantes e a prática social, confundindo as mentes e condutas das pessoas em diversas modalidades do que a lei prescreve tanto no que diz respeito aos jogos, como à embriaguez, a nudez ostensiva, ao desrespeito ao mínimo de bom senso no uso de aparelhagem de som, entre outras práticas de convivência social.
Tive a oportunidade de conversar com um cambista sobre o assunto e sua consciência de estar praticando ato ilegal era clara, mas justificada pelo fato de que a polícia não reprime senão os bicheiros que se envolvem com o tráfico de drogas. O curioso é que nossa conversa se deu calmamente em um terminal hidroviário, ele confortavelmente sentado à uma mesa justamente em frente a um box da Polícia Militar. Acompanhei parte de sua atividade, ele fazendo registros das apostas em um talão de recibos com cópia, tanto quando a recepção de mensagens em um aparelho celular em que as pessoas encomendavam os palpites e prometiam o pagamento via pix ou pagando em dinheiro em suas casas ou pontos marcados nas mensagens que enviavam.
Perguntado sobre como funcionava, ele me recomendou buscar na internete a tabela do jogo do bicho, com os mesmos associados a números de um a 25, mas com desdobramentos que tornam a lógica mais complexa do que a simples nomeação do animal encabeçador da aposta. A conversa rendeu com explicações detalhadas sobre o sorteio, os horários de definição da premiação, as formas de pagamento do prèmio, tudo com uma clareza e evidência admiráveis. Perguntei se poderia fotografá-lo mas ele se tornou reticente. O cenário da contravenção frente a um box da Polícia Militar era muito bandeiroso, e ele certamente sabia disso!
Vai ver os policiais, seus familiares, amigos, vizinhos, todos também jogam no bicho porque é mais em conta do que os jogos das loterias oficiais, e das máquinas eletrônicas das empresas e dos cassinos. Simples assim! Essa proximidade entre pobres e bicheiros elege vereadores, deputados, senadores e presidentes, porque a moral é algo tão difuso e confuso que ninguém se sente enquadrado naquele decreto lei exarado em 1941 e jamais validado pela educação e comprometimento do aparelho de estado nem sociedade.
Fiquei me perguntando sobre nossas contradições e funcionamento social, em que armas, bebidas alcoólicas, jogos viciantes, excessos de sonorização, uso de palavras obscenas e outros elementos de dissenção ecoam em nossas vidas como normais, engraçados, aceitáveis, aceitas. Que reflexões propor sobre essas práticas dilacerantes de nossa sociedade em construção? Que controles estabelecer sobre nossas contradições de frágil formação do carater de nossos filhos e netos? Que investimentos e intervenções propor para aproximar a civilidade de nossa prática cotidiana?