O RIO SOB OUTRO PONTO DE VISTA

Pedro e Maria, dois jovens residentes da pacata, montanhosa e amena Santa Maria Madalena situada a 650 metros de altitude, cidade que dista 260 km da capital fluminense. Ambos completaram dezoito anos neste mesmo mês de março, a empatia do casal é tanta, que mesmo nessa tenra idade, agregaram mais tempo de convívio comum, do que viveram antes de se conhecerem.

Seu primeiro e definitivo encontro aconteceu ainda na creche municipal Luis Antonio Rocha Carvalho, daí para frente, dada as poucas opções de escolas na rede pública municipal, e como bons alunos que sempre foram, concluíram os ensinos fundamental e médio juntos.

Conseguiram passar nas provas do ENEM para as carreiras que almejavam, ele geologia na UFRJ e ela biologia na UFF, provavelmente influenciados pela abundância de natureza no vizinho Parque Estadual do Desengano.

Caramba, como ia ser difícil deixar para trás aquela vida pacata, onde todo mundo se cumprimentava ao cruzar por aquelas ruas calmas e pouco transitadas. Como abrir mão daquele céu estrelado, principalmente quando se saía das ruas iluminadas do Centro, onde a Via Láctea parecia estar ali ao alcance das mãos, exceção apenas para as prateadas noites de lua cheia, que apagava estrelas de menor brilho.

Para quem passou boa parte da infância e adolescência trilhando as matas que levam a Pedra do Desengano, com seus 1.761m de altitude, e que em outras empreitadas escalou a crista da Serra Itacolomi, a Serra da Malhada Branca, o Pico São Mateus, além do conjunto das Cinco Pontas, todos com altitudes superiores a 1.500m, e no caminho ainda se refrescaram nas cachoeiras da Cascata, Mocotó e Tombo D´Água, seria muito complicado a mudança para capital fluminense, onde todas as escalas estavam fora do padrão de uma vida interiorana, numa cidade com menos de 10 mil habitantes.

Para facilitar as coisas, as duas famílias, em comum acordo, resolveram oficializar a união estável dos pombinhos. E ainda para melhorar o que já estava bom, optaram por dividir despesas que virão com a futura mudança de cidade.

Não demorou muito para que uma comitiva partisse de Santa Maria Madalena com destino a capital, o objetivo era encontrar um imóvel para alugar, atendendo a melhor logística para o jovem casal. Onde e como definir o melhor local que facilitará os deslocamentos futuros de ambos? Como conciliar moradia para quem vai circular entre o campus da Ilha do Fundão na capital e o campus da UFF em Niterói?

As possibilidades eram múltiplas nas duas cidades e seus muitos bairros, que aliadas à dificuldade da compra e manutenção de um automóvel, acabaram facilitando mais a vida de Maria. A opção foi a antiga capital fluminense, o que facilitaria seu trajeto de bicicleta para a universidade. Para Pedro, restava encarar diariamente o ônibus que liga Charitas ao Aeroporto do Galeão, atravessando a Ilha do Fundão.

Agora sim, começaria um novo capítulo na vida desses jovens universitários. O apartamento alugado em Icaraí, numa transversal à praia, permitia desfrutar de uma paisagem idílica da Mui Leal e Heróica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, vista desfrutada exclusivamente por aqueles que residem do outro lado da Baía de Guanabara.

Para quem aprecia a expressão da natureza, nada melhor que incorporar um pano de fundo harmoniosamente mesclado por gigantescos afloramentos rochosos, permeado pelo luxuriante verde e detentor da maior diversidade entre os biomas mundiais, a nossa tão maltratada Mata Atlântica.

O período da noite apresenta para quem reside de frente para o mar, uma paisagem de imensurável breu, apenas quebrado pelo período de lua cheia. Mas ali em Niterói não, o constante trânsito de embarcações de variado porte, com suas graves buzinas, mostram a efervescência de uma cidade em movimento, que não se restringe apenas ao meio líquido. No ar, o constante decolar e aterrizar de aviões no Aeroporto Santos Dumont dão ainda mais mutabilidade ao eterno piscar de luzes dos altos edifícios do Centro que se unem à orla da Praia do Flamengo.

Os dias de semana praticamente voavam, tarefas acadêmicas se transformaram numa máquina de engolir tempo, o que restringiu o compartilhamento do casal recém formado ao curto espaço dos finais de semana e os tão aguardados feriados. Pedro, que já gostava de se agarrar em pedras de longa data, descobriu um parque de diversões nas escarpadas montanhosas de cidade maravilhosa e para tal, aproveitava ao máximo aquele tempo cada vez mais escasso.

As aulas em campo de biologia acabaram por despertar em Maria o encantamento pelas trilhas, e não demorou muito para que ambos descobrissem os clubes de alpinismo que a cidade oferecia.

Foi no Clube de Excursionistas do Rio de Janeiro – CERJ, onde tudo ficou mais fácil, pois programação, companhia e guias não faltavam mais, para enfim desvendar os encantos da maior floresta urbana do mundo, conhecida como Maciço da Tijuca, com altitudes que superam os mil metros, mas que podem ser acessados por uma infinidade de vias.

No sábado era subir o Pico da Tijuca e se chocar com um tecido urbano ocupando boa parte da bacia da Baía de Guanabara. No domingo o objeto podia ser a Pedra da Gávea, com sua paisagem de mar sem fim, uma dádiva, para quem se habituou com outro tipo de mar, aquele de morros até o horizonte. Em outra semana a vista era da orla do Leblon, Ipanema e da lagoa Rodrigo de Freitas depois de uma rápida caminhada ao cume dos Dois Irmãos. Na trilha do Parque Laje, bastante íngreme, levou menos de uma hora até o caminho das Paineiras, aí sim um verdadeiro paraíso protegido por exuberante cobertura vegetal e pequenas quedas d’água com temperatura que garante banhos gelados, mesmo no auge do verão. O Bico do Papagaio, a Pedra do Grajaú, a travessia do Horto para a Gávea, O Morro da Urca, são inesgotáveis as possibilidades do convívio com o verde, mesmo numa cidade com mais de seis milhões de habitantes.

A chuva que cai com mais frequência no verão, consistia no único impeditivo para pessoas que como eles, sempre privilegiaram a vida em contato direto com natureza. Vale lembrar, que a temporada de montanhismo sempre começa no mês de abril e se encerra em setembro, exatamente o período menos chuvoso do ano na cidade, e que permite escaladas e caminhadas com mais segurança e conforto ambiental.

O Maciço da Pedra Branca, na Zona Oeste da cidade foi o desafio seguinte, para inclusive conhecer o ponto culminante do RIO, o Pico da Pedra Branca com seus mil e vinte e dois metros de altitude. Os colegas de clube receberam a missão de ajudar na demarcação da Transcarioca, a maior trilha urbana de longo curso do Brasil e da América Latina, com cerca de 180 km, que cruza a cidade de oeste para leste, começando em Barra de Guaratiba e terminando no Morro da Urca. Esse tipo de ação exige muito de seus voluntários, pois abrir e passar pela primeira em um trecho da trilha é uma experiência para nunca mais se esquecer.

Bom, agora é outra estória, quem em sã consciência poderia imaginar que dois jovens, oriundos de uma remota cidade do interior do estado, com população diminuta, conseguiriam em tão pouco tempo se integrar ao núcleo de uma região metropolitana de exagerados treze milhões de habitantes, mas por incrível que isto possa parecer, esta era a nova realidade.

Depois de muitas trilhas e escaladas ambos adquiriram uma noção de espaço da cidade que poucos cariocas da gema jamais atingirão, pelo menos nessa encarnação.

Essa vida de natureza na veia, tanto pelo viés acadêmico, como pelo hobby escolhido, não permitia espaço para mais nada na relação, exceção feita para viagens esporádicas à casa dos pais, que ansiosos cobravam visitas mais constantes.

Todo pai que se preza, torce para que os filhos criem asas e façam seu novo mundo, mas não precisava exagerar, e essa era a reclamação dos mais velhos, pois arcavam com altos custos, mas não conseguiam mais saber das dúvidas e planos futuros da dupla agora carioquizada.

Essa questão sentimental veio à tona num desses feriados prolongados, quando para alegria geral da nação, os filhos pródigos avisaram que iriam para Madalena, é assim que os locais se remetem à cidade serrana.

Sabe aquela coisa de preparar prato e sobremesa preferida de cada um, juntar parentes que pouco se viam, avisar a amigos que também sentiam saudades da dupla, para enfim comemorar aquela velha tradição de que “o bom filho a casa torna”.

Com previsão de chegada para a hora do almoço, expectativa grande, rodoviária pertinho de casa, ansiedade dos pais incontida, e em bloco a parentada rumou para estação, querendo proporcionar uma baita surpresa aos pombinhos.

Surpresa mesmo tiveram os parentes, esses quase cidadãos honorários da Cidade Maravilhosa desembarcaram com mais quatro casais, todos com farto aparato para acampamento e escalada como parte da bagagem.

Depois das apresentações, veio a decepção familiar, na realidade a programação tinha até planejado um tempo familiar, mas muito curto de convívio. Na verdade, o objetivo do grupo era passar pelo menos três dias no Parque Estadual do Desengano, a unidade de conservação estadual mais antiga do estado e também a menos conhecida, inclusive no meio excursionista.

Pedro e Maria seriam os guias, pois conheciam de longa data essa área que tem acesso próximo a casa de seus pais. Em meio à frustração geral, pelo menos um saldo visivelmente positivo ficou para as famílias, a integração dos filhos a um grupo homogêneo, pelo menos nas vestes e na forma de levar a vida, e claro, ficou claro o protagonismo do casal num grupo de dez componentes.

Quanto mais escasso o momento de convívio com filhos, mais precisamos estar atentos aos pequenos detalhes, e entender que essa autonomia alcançada é também mérito de uma criação voltada para o mundo, principalmente agora, onde tudo parece descartável ou substituível. Como se torna gratificante, assistir de forma privilegiada que a passagem de valores foi concluída com sucesso,

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 26/10/2023
Código do texto: T7917237
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.