Mágoa

Me falaram certa vez que eu deveria fazer uma “viagem’ interior, mergulhar em mim para me conhecer melhor, saber quem eu realmente era.

Já viajei bastante, mas essa foi a pior, mais turbulenta, mais amedrontadora de todas. Te garanto que a sensação que se tem quando o avião começa a balançar a ponto de as portas dos bagageiros se abrirem, as pessoas gritarem “pelo amor de Deus” e os comissários se sentarem com temor no olhar, não chega aos pés do medo que senti e sinto até hoje só de pensar nisso.

Nessa “viagem” me deparei com percepções impensadas, vindas das primeiras memórias criadas em minha mente, percebi que a teoria de que quem você é não nasce totalmente com você, é de fato verdadeira, boa parte de você é forjado pela criação, pela convivência, pelo exemplo vivido desde o nascimento.

Minha mente então decidiu enveredar-se por esse caminho. O que tanto me perturba? Me perguntava. E assim ela foi me levando, como um guia em um mundo desconhecido, em busca da resposta para essa pergunta.

Foi colacionando atitudes, palavras, expressões que fazem parte do meu cotidiano hoje e do meu passado, tentando entender de onde e porque surgiram.

Quando se tem um filho sua vida acaba! Essa frase é uma delas, uma frase escutada desde que ela conseguia se lembrar, uma frase que tem uma justificativa louvável (quando se tem um filho você para de pensar em si e passa a pensar e viver para ele), mas para uma criança, sem o discernimento completo para entende-la, ela se torna o que é, eu acabei com a vida de meus pais, se eu não tivesse nascido tudo seria diferente e acaba por justificar certos comportamentos, sou tratada dessa ou outra forma por que eu destruí a vida dele(a) e nessa interpretação não cabe explicações, a não ser que não se é amado.

O filho tem que temer os pais, não respeita-los! Outra frase recorrente com outra explicação que para quem diz é justa (uma criança pequena não entende o que é respeito, então o medo de apanhar, de ser corrigida, deve imperar, quando ela crescer e entender o contexto, esse medo se transformará em respeito), mas imagina passar sua infância e adolescência inteira com medo, medo de falar, de comer, de vestir, de andar, pois um único olhar te gela a alma e para seu coração. Não sei para os outros, mas para mim não houve essa transição, o medo continua medo, agora medo de não estar à altura, de não agradar, de contrapor e se transforma em silêncio, distanciamento, dor.

Na minha época era bem pior! Mais uma frase recorrente e justificada (minha geração sequer sentava a mesa com seus pais, onde meu pai estava eu não ficava, criança não tinha voz, uma coisa fora do lugar era motivo para apanhar, sempre trabalhamos desde o nascimento e isso nunca matou ninguém, pelo contrário forjou seres humanos fortes e que dão valor ao que tem), desculpa mas se hoje eu não consigo entender, imagina quando criança, sem carinho, afago, amor.

Um pai cria sete filhos, mas sete filhos não criam um pai! Justificada pelo abandono que muitos pais sofrem na velhice, sem carinho, afago, amor. Bem, depois de todo o dito, ainda não sei como dar a alguém algo que nunca recebi.

Minha guia me levou depois para outro enredo, a descoberta de que aquele super-herói inabalável, na verdade não era tão cheio de virtudes assim, que errou muito no passado, que foi indolente, irresponsável, que tomou caminhos desonrosos, que foi tão infantil quanto você, que é um ser humano como qualquer outro, com falhas, remorsos, dores, temores, culpas inconfessáveis.

Nessa conjunção há um surto, sua mente tenta entender como pode alguém que cometeu os mesmos erros que você ou piores, não consegue te entender, alguém que sofreu as mais diversas tragédias e transtornos te trata e tratou da mesma maneira e justifica isso como sendo necessário para seu crescimento.

Como pode esse alguém não ter nenhum tipo de empatia e manter o dedo sempre em riste para julgar e condenar quem e qualquer um que passe por seu caminho, mesmo sendo conhecedor da mesma dor, do mesmo calvário, da mesma vontade de viver.

Minha guia me mostrou que eu não fora a única atingida, que todo esse conjunto de ações moldou o barro do qual foram feitos todos que comigo viveram, que quem leva o meu sangue leva também minhas angustias e sofrimento, que além de eu não ser a única, não sofri terça parte dos que vieram antes, me fez ver que eles não tinham a quem recorrer e eu sempre os tive e que isso era mais do que poderia pedir.

Me fez ver que sempre tive todo amor que podia ter, que nunca me faltou nada e assim me sinto uma criança mimada e cheia de vontades, que quando não tem o que quer, da forma que quer, na hora que quer, dá birra. Tudo porque o que eu queria era ter tido isso de quem também não sabia o que era isso.

Me evidenciou que sempre gostei de me torturar, se não emocionalmente, fisicamente - para o segundo há meios de controle, para o primeiro ainda não encontrei solução e quando digo isso não é só por falar.

Todas as minhas mágoas, feridas, desesperanças, foram criadas e alimentadas por mim, tenho mania de me machucar.

Algumas feridas nunca permiti se curar, sabe quando você se machuca fisicamente e a ferida começa a se fechar e cria uma casquinha e começa a coçar? Então, o certo é continuar passando o remédio adequado, não pensar mais naquilo e aguardar sua completa cicatrização.

Pois bem, eu não, tanto física, quanto mentalmente, sempre que uma ferida cria essa casquinha, quando meu coração pede que deixe ir, Ela, minha mente, não consegue se desligar daquela maldita coceira e coça até que retire toda a camada de proteção criada, a ferida volta a sangrar e se ampliar, mesmo que de forma consciente eu saiba que não posso continuar assim, há feridas que nunca consegui permitir que se cure, o que era apenas um arranhão se torna um trauma profundo que deixará sua marca eterna.

Indo mais além, me fez notar que eu não me permitia ser amada e isso não é por não querer sentir o calor do amor ou as famosas borboletas no estômago, não é algo consciente, uma chave que se aciona ou não, nem sei se tem palavras que definem o que é, só sei que sempre pensei que não conseguiria amar de volta da mesma forma, é por isso que procuro meios de afastar as pessoas e acabo machucando todos que se aproximam, seja do meu sangue, alma ou só de passagem e que isso vinha dela mesma, minha mente não conseguia se desligar do meu passado, as feridas criadas por ela mesma não estancavam.

Desde a infância aprendemos a engolir o que quer que seja, aprendemos que nossos anseios vêm depois de nossas responsabilidades, aprendemos que devemos fazer, ser, o que precisa, não o que deseja, assim o manter ou romper dessa ordem causa inúmeros transtornos, muitas vezes com a perda de nossa saúde mental, nossa sanidade.

A vida se perfaz do que nos é apresentado, nos é ensinado ser o que devemos ser dentro da forma geométrica determinada antes mesmo de nascermos.

Acredito que essa “viagem” todos deveriam fazer, tentar entender quão mal pode ser e fazer, e o porquê disso, perceber que a cada julgamento infundado que faz, cada dedo em riste, na verdade é uma confissão de si mesmo, são três dedos que voltam para si, é perceber que tudo de ruim que se fala ao outro ou sobre o outro não passa de reflexos do que ouviu e viveu em toda sua existência, ter a consciência de que pode, se quiser, ser diferente e assim aproximar as pessoas que te importam, perceber todos os transtornos que causou, deixar o orgulho de lado e pedir perdão, perdão por não ter entendido que poderia ser diferente e não menos admirado, respeitado, amado, perdão por não ter sabido quão mal tinha feito a si mesmo e ao outro, perdão de alma e coração e assim, quem sabe, ouvir um igual pedido de perdão, perdão pelos pensamentos ruins, pelo afastamento, pelo desconforto sentido.

Uma frase de Nietzsche no livro assim falou Zaratrusta diz: "Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você. ”

A autoconsciência adquirida nessa “viagem” é exatamente isso, perceber que ao lutar contra o que mais dói corre-se o risco de se tornar a mesma coisa, deixar a ferida se curar para que possa viver o melhor que a vida pode oferecer é o único meio de não se tornar espelho do que mais odeia.

Não temos como prever como será o fim dessa jornada, mas garanto que podemos ser pessoas melhores e mais felizes assim, o perdão a si e ao outro é a única forma de se conseguir isso e a única coisa que precisamos é estar em paz com nossa própria guia, nossa mente, vencendo o orgulho e encontrando no meio de todo o caos a gratidão por ser quem somos e conseguir enxergar todo o bem que o outro nos fez e faz.