O dom do exercício
O dom do exercício
Dia desses senti literalmente a mudança da estação. A luz no entardecer, os insetos na quadra pela manhã, a temperatura que mais parecia um abraço confortável, ligeiramente caloroso. Depois, as estações meio que se embaralharam aqui no pedaço, dias tórridos substituídos por noites, auroras e tardes geladas, depois dilúvios, depois sei lá o que.
“Quando sofremos com alguém, nós regamos o jardim da sua tristeza”.
Isso posto, vamos a uma piada da era Reagan - três cachorros conversando, um americano, um polonês, um russo. O cachorro americano diz que quando ele quer comer carne, começa a latir demais. O cachorro polonês indaga: o que é carne? Ao passo que o cachorro russo reflete: o que é latir?
Ai, ai, a mente pode ser acalmada com argumentos e explicações, mas as estruturas energéticas embutidas na aura permanecem.
Dizem que estamos criando a transição de uma personalidade terrena – presa ao tempo e ao espaço, limitada pela era e cultura em que vive – para uma personalidade sustentada pela alma, isto é, uma personalidade inspirada pelo nível da alma, e que está livremente em contato com muitas outras dimensões além desta.
Eu acrescentaria que essas dimensões surgem de várias formas. Podcasts, por exemplo, que na minha cartilha era um lance feito pela Tia dos Gatos. Cruzes, quanta ignorância. Duas mini séries realmente enriquecedoras, uma de 2022 e outra de 2023, respectivamente “Wecrashed” e “The Dropout”, foram escritas a partir de podcasts. O cinema, colega, se alimenta de tudo. E as histórias são cem por cento verídicas. Excelente amostragem da contemporaneidade.
Também fiquei de queixo caído ao ver o histórico dueto ocorrido durante um programa transmitido pela TV Tupi em 1970. Wilson Simonal e Sarah Vaughan cantando “The Shadow Of Your Smile”.
Daqui até o Natal falta um clique. Ruminando poeticamente, o dever de cada um a salvo das garras dos trevosos deve ser entregar conforto, compaixão, alívio, humor e coisas afins para preencher a escuridão.
Nunca a matéria controla a consciência.
E nem poderia se nos atermos aos enfeites que nos cercam e o modo como eles andam crescendo ultimamente.
Acho que isso aconteceu no entorno de 2007, no Canadá. John Pizzarelli ao vivo, música, “I've just seen a face”. Eu já havia visto isso. Dia desses revi e veio de imediato a reflexão de que há um pacote de comunicação absurdo nesse ângulo. Tudo dança junto, Beatles, a canção em si, a versão do Pizzarelli - incluindo a voz, a entonação das palavras da canção, o solo e ou improviso em notas e depois em bloco, me peguei exclamando para um amigo estrangeiro: puta que pariu, I took it for granted. Ou seja, nesse caso, não dei o devido valor.
Em 1999, ao fim de um show dele no Bourbon Street, tendo a casa sido inteira esvaziada, público, staff, até hoje não sei como isso foi arranjado, eu estava com duas amigas, sentamo-nos todos numa mesa perto do palco para papear, lembro-me do irmão dele tentando pegar o copo da minha mão e dizendo: you had enough, ao passo que eu contrapunha (provavelmente) um fuck you. Daí o John riu e fez uma dedicatória pra mim num guardanapo. Desses delineios que a gente guarda sem esforço.
Bob Bakert, jornalista top da Jazz Guitar Today, escreveu sobre o John Pizzarelli: "Ele é um guitarrista virtuoso, um vocalista expressivo/autêntico com tremendo controle de intervalo e tem aquela qualidade indescritível de Sinatra de fazer cada ouvinte sentir que está fazendo música só para você."
Sim a estação mudou, e há um truque de design aí que parece cantar só para mim, mas de fato abraça a todos.
(Imagem: Louise Brooks -1906-1985- by Eugene Robert Riche,1928)