Quero ser um fogão à lenha
Com certeza, na época em que não existia o celular, algumas pessoas já brincavam com amigos ou familiares de escolher algum animal ou objeto que gostariam de ser numa próxima encarnação. Eram momentos que tinham alegria, trocas e todos se ouviam.
Para escolher um bichinho era muito fácil. Os pássaros e os gatos ganhavam de lavada. Brinquem e verão que a estatística é verdadeira.
Os pássaros eram escolhidos pelo voo exuberante, pelo colorido das suas penas, pelo canto mavioso e único de cada espécie, e principalmente pela liberdade como cruzam os ares. Escolhem o lugar de seus ninhos, não pagam aluguel e assistem de camarote tudo o que acontece aqui na terra.
Os gatos, então, ganhavam pela vida preguiçosa que sempre levaram, por viverem dentro das casas, dormirem nos lugares mais fofos e quentinhos, muitas vezes no colo ou na cama do dono. São acariciados. Buscam os namorados nas caladas da noite e fazem o barulho erótico mais escandaloso sem se preocupar com a censura dos moralistas.
Em se tratando de objetos, a escolha fica mais difícil. E acabamos nos surpreendendo com as justificativas dadas, umas que nos fazem rir e outras que nos levam a pensar um pouquinho sobre elas. É uma delícia, porque também dá para fazer uma relação das características da pessoa e principalmente, da sua criação familiar e o contexto regional em que cresceu ou ainda vive.
Quando num desses momentos de brincadeira eu disse querer voltar ao mundo como fogão à lenha, foi a maior tiração de sarro. Como assim? Então dei as minhas justificativas.
Ao redor de um fogão à lenha se agrupam pessoas que gostam de uma boa prosa, falam de receitas, contam histórias, relembram do tempo antigo, falam com saudades dos avós. Ficam um bom tempo ao redor do mesmo, se preocupando em manter as chamas acesas e a taipa limpa.
Não se preocupam que a fumaça se impregne nos cabelos e roupas. Só querem estar ali, seja no verão ou no inverno. O calor não incomoda. No frio, empoleirados no rabo do fogão é muito bom “quentar” os pés .
Bem cedinho são acesos, com a lenha guardada no dia anterior, para que estejam secas e fáceis de pegar fogo. Logo uma chaleira ou caldeirão é abastecido com água para a garantia de um café rápido ou facilitar a lavagem e o brilho das panelas que serão usadas durante o dia.
Quem é preguiçoso corre longe do fogão à lenha, pois diz que estragam as mãos, esquentam demais a barriga, cansam as pernas. Mas na hora do rango pronto, da gordura da linguiça fazendo barulhinho na chapa, de um milho assado, do cafezim coado na hora, franguinho na panela, esquecem dos problemas rapidinho e juntam-se aos demais para saborear os quitutes.
No momento de lavar as louças e panelas, o cansaço e as desculpas surgem novamente, e somente aqueles apaixonados pelo fogão é que ficam cuidando com zelo. Tiram o excesso das cinzas, juntam as brasas, vassouram a taipa, exibem as panelas de ferro na chapa para secar. Depois de tudo terminado, ainda ficam assim embevecidos olhando para ele com ternura, enamorados, já pensando na próxima refeição.
Somente pessoas simples, desprovidas de vaidades colocam a mão na cinza, cheiram a fumaça, sabem que o sabor do que preparam não está nos temperos e nem no fato de serem preparadas no fogão à lenha. O sabor está no afeto das pessoas reunidas, nas memórias das histórias contadas, nas receitas da sua infância, no gostinho do bolinho da mãe ou no feijão da vózinha.
Quem quiser, como eu, ser um fogão à lenha experimentará esses momentos mágicos e saberá que ficará na memória de algumas gerações, será lembrado em prosa pelos escritores regionalistas ou nos versos de algum poeta saudoso.
Então, bora lá brincar para continuar esta história!