Silêncio "forçado"
Em outra ocasião fora descrito que o silêncio tem sua voz, com diversas interpretações, mas no caso presente será demonstrado que o silencio dá voz não a quem cala, não a quem sofre, não a quem se culpa, o silencio dá voz aquele que se beneficia dele.
Vemos diuturnamente divulgações de casos de violência doméstica, abusos, estupros, fatos considerados corriqueiros de nossa sociedade. Não vemos que tais casos divulgados, na verdade, não chegam a um décimo da realidade dessa mesma sociedade.
Só chegam a mídia casos que envolvem pessoas famosas, importantes, seja de que forma for e quando chegam, chegam aos montes, não um nem dois, mas centenas, milhares.
Não chega a mídia o seu caso, da sua irmã ou irmão, sua vizinha, vizinho, seu amigo, amiga, um conhecido, não chega a mídia casos da vida cotidiana, não chega a mídia o que realmente deveria chegar.
Estatísticas mostram números estratosféricos de casos comuns, mas não conseguem perfilar a pura realidade.
Porque será?
Será porquê?
Nessa digressão, mais importante que em todas as outras, a história se faz necessária, o contexto social é primordial, não é um fato de hoje, é um fato de sempre.
Sempre que vejo filmes, novelas, contextos de tempos passados, digo que se tivesse vivido nessa época teria me matado, matado alguém ou fugido para sempre e a resposta que tenho dos que me envolvem é que as pessoas se moldam ao tempo que vivem e se tivesse vivido naquela época teria me adaptado.
Respondo que não! Não me adapto hoje, quiçá nos tempos em que não poderia ter voz.
Quando vemos estes filmes, novelas, contextos sociais em que o ser humano é tratado como propriedade do outro nos indignamos, mas justificamos tais atos no contexto social da época.
Digo que nada ou pouco mudou desde então.
Vejamos:
Poderia levantar bandeira, creditar esse demérito as mulheres, negros, pobres, crianças, mas não, é um contexto muito mais complexo que não tem idade, sexo, cor de pele, status social.
A questão envolve TODA a sociedade!
Sociedade essa que sempre impôs o silêncio da vítima do ato. Não concordo com esse termo “vítima do ato”, acredito ser vítima de um contexto, vítima de um tudo, vítima da vida. Vida essa que não se escolheu viver!
Os algozes na maioria dos fatos são tão próximos que chegam a se confundir, psicologicamente, com a vítima. Talvez daí tenha surgido a necessidade do silêncio, silêncio do absurdo, do inconcebível, do inominável.
Nem a sociedade de hoje está preparada para tais revelações, revelações que demonstram que seu coração, sua alma, sua existência está contaminada, sempre esteve, nunca deixou de estar, que a fachada imposta a massa é nada mais que uma cortina de fumaça para esconder sua verdadeira face.
O mal está mais que enraizado, o mal se confunde a sua criação!
Em outra digressão também se afirma que a pior traição se vem de quem menos se espera, nessa não há nada mais que confirmações.
A maciça maioria dos casos de violência doméstica, abusos, estupros, não vem de um estranho na rua, vem de dentro, do seio de nossa sociedade, do pai, padrasto, irmão, primo, padre, pastor, guia espiritual, quem quer que seja que detenha a confiança da vítima, aquele alguém de quem ninguém poderia suspeitar.
Daí a importância do silêncio, silêncio esse forçado a vítima para que não manche a imagem de uma sociedade perfeita, para que não manche a imagem daquele cidadão perfeito. A vítima não importa, importa o que os outros vão pensar.
Em diversas ocasiões foram reportadas as posições das vítimas como algoz da própria desgraça, histéricas e exageradas quanto ao fato ou mesmo como simples vítimas de uma sociedade machista.
Ridículos e louváveis! Cada um em sua posição.
Não importa como a vítima seja retratada, nenhum retrato será capaz de captar, exemplificar ínfimamente o que se passa na mente, alma e coração daquele que sofreu tais abusos e transgressões.
Pior ainda, nada será capaz de descrever a culpa que a vítima sente pelo fato ocorrido, seja único ou reiterado, a culpa por ter sido escolhida, a culpa pela exposição, a culpa por ser quem é. Ou pior, a culpa pelo fato de o agressor ser punido, seja por morte, prisão, derrocada de sua imagem ilibada, não importa o quão vítima será, será sempre culpada.
Se você é a vítima, o algoz é pai, filho, amigo, irmão, conhecido de alguém importante na sua vida e você ao se declarar vítima, se autoflagela o título de vilã na vida de alguém que vale até, na maioria dos casos, mais que sua própria vida.
Ao se livrar de um peso carrega-se outro infinitamente maior, então para que não cause dor a outros engole a própria dor, vive-se querendo morrer e morre-se querendo ter a oportunidade de ter vivido uma vida diferente.
O silêncio, nesses casos não é uma escolha, mas uma condição para ver viver plenamente outros seres que não têm ideia da vida ou sobrevida que você leva.
O silêncio se torna a única forma de ver feliz outros como gostaria de ter sido na vida.
O silêncio “forçado” é nada mais nada menos que o único meio encontrado de seguir em frente.