VIDAS LÍQUIDAS
Vidas líquidas
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza
NA SALA, uma tela de Tarsila do Amaral (1) e Anita Malfatti (2) vestiam com um colorido inimaginável a parede central do ambiente. O resto, se agrupava de mobiliários comuns. Num desvão afastado, um aparelho de televisão e DVD. No vídeo o pequeno Eros assistia “Percy Jacson e o ladrão de raios”, com Sean Bean no papel de Zeus, o deus mais poderoso de toda a mitologia grega. Ao lado de Eros, Sofia, a pequena cunhã (3), com um copo de refrigerante na mão e, entre os dois, uma bacia de pipocas recém-saída do micro-ondas.
No ar parado, uma bulha (4) vinda de fora, de longe, do distante imensurável, entrava pelas janelas. Atrapalhava o silêncio juntamente com um pitium (5) produzido pela fumaça dos cigarros tragados pelos pais das crianças que conversavam aconchegados num canapé azul claro. Maria Gorda, a velha preta cheia de atarefas na cozinha, parecia ter saído de uma sapituca (6) recente, tamanha a pachorra que lhe corroía a carcaça estropiada.
Se pudesse, ah, se pudesse, a gosto de escolher, sem embaraços e estorvos, fugiria para sua camarinha (7) nos fundos da casa e deixaria que a alma despenhasse (8) à fortuna de uma vereda intransponível, onde a vida se acalmaria junto com o seu destino fatigado e hostil. Mas o jantar dos patrões seria servido dentro em pouco e ela não poderia imprimir delongas às panelas que fumegavam nas seis bocas do fogão último tipo.
De frente para a tevê, as crianças seguiam às voltas com o filme, a trama cataléptica (9) no seu enredo. Na varanda, marido e mulher absorviam, à relho (10) solto, um papo sem fundamento, desfraldado de qualquer tipo de emoção maior, tanto que as palavras, soltas ao acaso, davam loopings fantásticos em meio às fumaças que subiam como fantasmas assustados se desmunhecando em direção aos espaços de um teto carecente de uma limpeza mais aprofundada.
Em meio destas massas tóxicas, olhares inócuos se misturavam enraizados num brilhar sem cor, enquanto o tempo vagabundeava à mercê do acaso, sem o azorrague (11) de qualquer coisa sólida que pudesse ser absolvido como normal. E o tempo passava invariável. O filme das crianças corria pouco passos de alcançar o final. Na varanda mais uma rodada de cigarros era acesa. Maria Gorda acabara de preparar a mesa e, agora, só faltava convocar o povo para que tomasse acento nela, cada um na sua respectiva cadeira.
Meia hora à frente, todos acomodados ao móvel vestido em rigor apessoado para a derradeira refeição do dia, congregavam num encontro que não transmitia emoção, ao contrário, pesava. Os pirralhos não entravam numa avença (12) conciliatória. Eros não gostara nem um pouco da história, sendo contraditado veementemente por Sofia, que amava de paixão a velha mitologia. Seu Machado, cabeça do casal, pedira silêncio observando que na hora da modulação dos talheres não se devia discutir picuinhas.
Maria Gorda num canto, afastada, solitária na sua dissimilitude (13) seguia atenta. Qualquer chamado se faria presente antes que dona Giselda piscasse os olhos debaixo das lentes fundo de garrafa. A doméstica não homologava dar de bandeja seus direitos, nem ser chamada a atenção. Tantos anos naquela residência e a sua vidinha medíocre e inócua continuava aborrecida, sem graça, sem açúcar, sem sal, literalmente insossa.
De igual modo, sem os festejos das cores, sem o cheiro saboroso de possíveis melhoras. Mesmo norte, sem perspectivas de um amanhã de felicidade. Para ela, o tempo parara numa determinada intermitência. E não seguira em frente, apesar das promessas que fazia com assiduidade a ponto de latejar os joelhos nas missas dominicais, à Nossa Senhora e das velas que acendia para seu anjo de guarda. Entrelaçados num amplexo sem calor, sem energia, sem efervescência, seguiam Eros, Sofia, dona Giselda e seu Machado.
O tempo, inexorável, em caminho idêntico, seguia estagnado. Acorrentado, vegetava sem amanhã, se amofinava, sem agora, se esfacelava querendo se perder de vista. Se destravar do hoje. O tempo pleiteava voar para outros horizontes. Volutear aproveitando a magia inebriante da cálida noite que se agigantava, que se avolumava além das portas de acesso à rica mansão. Um peso morto, de braços dados à uma desesperança infortunosa estancava tudo.
Talvez, também, seguramente por conta disto, o amor na sua melhor força de expressão não se fizesse bonançoso, impedindo que tudo e mais um pouco, naquela dinastia, se moldasse feliz, bonito, irrefragável (14) e indubitavelmente real. Talvez, por estas escarpaduras (15), mesmo sentido e direção, aquela pobre família rica não se via, nem se sentia, nem se coadunava imensamente realizada dentro da própria realidade em que viviam. Ou melhor dito: em que VEGETAVAM.
Notas de rodapé:
1
- Tarsila do Amaral. Pintura brasileira natural de Capivari, interior de São Paulo. Autora das obras de arte “Operário” e “A Cuca. ”
2
- Anita Malfatti. Pintora e desenhista brasileira. Deu vida aos quadros “O homem de amarelo,” Tropical, ” e “O Farol.’
3
- Cunhã. Mulher jovem, menina ou moça na flor da idade.
4
- Bulha. Ruído ou gritaria, alarido ou confusão.
5
- Pitium. Parasita de plantas aquáticas. Sinaliza também qualquer coisa que produza odores desagradáveis.
6
- Sapituca. Pessoa ligeiramente embriagada, tonta ou desfalecida.
7
- Camarinha. O quarto de dormir.
8
- Despenhasse. Pessoa que se precipitou ou caiu de grande altura.
9
- Cataléptica. Aquele que sofre de catalepsia, ou que vive em estado mórbido.
10
- Relho. Chicote para açoite ou instrumento com a finalidade de castigar alguém.
11
- Azorrague. Cipó para punição ou flagelo.
12
- Avença. Acordo, pacto, convenção realizada num negócio
13
- Dissimilitude. Desigualdade ou diferença.
14
- Irrefragável. Tudo aquilo que não pode ser contestado.
15
- Escarpaduras. Corte ou inclinação de um terreno.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de João Pessoa, na Paraíba.