PELO INFINITO DESEJO DA POSSE
Pelo infinito desejo da posse
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza
ME ENCONTRO preso com mais quinze detentos (num cubículo que mal dá para oito) jogado às traças atrelado a uma sozinhez infame. Nesse então, vegeto as horas numa cela fria e imunda da delegacia, a única existente no prédio da delegacia de polícia de Saltinho do Cágado, um vilarejo escondido e esquecido no meio do nada. A cidade mais próxima, Boricoxó do Meio, dista exatos trezentos quilômetros. O acesso à Saltinho do Cágado é feito por uma estrada cheia de curvas fechadas e sem asfalto. Por toda a extensão, buracos de todos os tamanhos e pontes prestes a ruírem de uma hora para outra se fazem presentes. O crime cometido? Ter levado a Isabela (com consentimento dela) para o meio da mata fechada, jogado seu belo e atraente corpo ao chão que margeia as linhas de trens que cruzam a localidade e feito sexo com ela.
A princípio, ela queria. Aliás, sempre quis. Até hoje não disse nada em contrário. Me disse num desses nossos encontros (antes de eu cair nas garras do delegado), que era vontade dela romper a sua virgindade comigo custasse o que custasse. Depois disso ficou sumida por mais de uma semana. Procurei a infeliz por todos os lados possíveis e imagináveis e nada. Por acaso, a encontrei na birosca do Salamandro. Meu coração, nessa hora, pulou. Quase saiu do peito em explosão descomedida. Entrei esbaforido e corri a me sentar com ela. Antevendo o que rolaria, me deixei levar pela alegria do sexo fácil prometido. Isabela trajava a mesma vestimenta com a qual a vi da vez primeira. Uma sainha vermelha muito curta deixando à mostra a calcinha da cor de seus olhos verdes claros.
Tinha a beldade, vinte e nove anos completo, todavia, vista assim, qualquer maluco daria menos. Tínhamos uma barreira de anos se interpondo entre nós. Enquanto ela sorria nos vinte nove, eu zurzia as aflições dos meus sessenta e nove. Linda de morrer, Isabela se assemelhava a uma bonequinha de vitrine. No geral, uma gatinha difícil de ser esquecida. Ficamos sentado numa mesa, acolhido por um canto ermo do espaço enorme, longe de olhares curiosos por quase duas horas. Nesse tempo, patrocinei seus gritos de fome com várias latinhas de refrigerantes seguidas de uma dezena de porções de batatas fritas. Enquanto a via comendo, lembrei de como a conheci. Eu a flagrei vagando pela rua empoeirada (a única existente) umas três ou quatro vezes. A linda dormia ao relento, ou mais precisamente no chão frio do coreto, em frente à igreja de Santa Madre Corinha, padroeira da comunidade.
Trocamos algumas palavras, e, depois disso, ela deu uma sumida básica. Pensei que houvesse pegado a estrada e voltado para Boricoxó do Meio ou seguido em frente, indo parar em Sovaco da Cobra de Pedra, uma outra vila de menor porte que Saltinho do Cágado, distante uns vinte quilômetros. Pergunta daqui, indaga dali, descobri que ela não fora nem para adiante, nem regressara. Estava em casa de uma senhora bondosa que a acolhera com seus molambos e dissabores. Bati numa tarde em tal residência e me avistei com ela por longo tempo. Trocamos olhares afogueados e, num desses encontros, ela se mostrou propensa renovando o que havia dito antes, ou seja, a vontade de se entregar a mim. Era ainda pura, apesar dos vinte e nove. Fugira de casa por morte recente da mãe e seu pai, queria abusar dela.
Medrada, certa noite pegou a estrada e sumiu sem rumo. Veio parar em Saltinho do Cágado e se fez moradora de rua, até que uma velhinha de alma enternecida, dona Preciosa, ao sair da missa, se comovendo com a sua desdita, resolveu lhe dar abrigo, cama e comida. Em troca, a hospede ajudaria na conservação da casa, molharia as plantas, cuidaria das galinhas e, nos domingos, ajudaria o padre Botucatu a guardar os apetrechos usados na missa, e, em seguida limparia a igreja e a sacristia. A coisa toda da minha prisão aconteceu numa sexta, depois que a Isabela voltara da quitanda. Ainda a ajudei com as sacolas até a casa de dona Preciosa e depois de uma meia hora, saímos de mãos dadas. Fomos em direção a uma espécie de mata fechada, que se formava logo após os trilhos da estrada de ferro que cortava as redondezas.
Assim que chegamos, doido de pedra, o sangue em fervura, parti para o ataque, sem dar um minuto a mais de folga à presa, a atocaiei com o furor que me consumia. Em excitação desvairada lhe arranquei o vestido e a calcinha e parti para o abraço. Deitado sobre ela, nossos corpos suados, despidos de medos ou receios, nos consumimos sem preconceitos num amor louco e indescritível. Foi quando, do nada, apareceu o doutor Chinfrânio Carrapeta, delegado de polícia acompanhando de um outro policial civil. Ao se aproximar, juntos, e, justo, naquela hora amarga, eu entorpecido pela paixão, tapava a boca de Isabela, justamente com a calcinha dela. Ao topar com a cena, o delegado entendeu a cena de forma errada. Em contínuo, puxou a arma e me deu voz de prisão, enquanto o colega do distintivo pedia ao meu amor que se recompusesse.
Tentei explicar, mas o delegado não me quis dar ouvidos. Me levou preso e me jogou nesta cela imunda que me encontro agora, faz mais de trinta dias. Preparou o flagrante, ouviu as testemunhas que nos viram na birosca, nelas a inclusão do Salamandro. As únicas almas piedosas que falaram bem de mim. Dona Preciosa e o padre Botucatu. O inquérito foi enviado para o fórum, porém, o juiz e o promotor só aparecem por essas bandas, quando a coisa é muito urgente. Segundo o representante da ordem, meu caso não é importante e ele me disse que não tem interesse em buscar o juiz, tampouco o promotor de justiça. Ambos vivem em Boricoxó do Meio. Alegou, para tirar o seu da reta, que a gasolina está muito cara. Por aqui não existe telefonia celular, muito menos fixa.
Estou, pois, jogado às traças. Sem advogado, à espera de um magistrado que não tem dia certo para definir em favor ou contra a minha liberdade. Dona Preciosa vem me ver todos os dias. Traz meu café da manhã, almoço e janta. Na derradeira me revelou que o delegado proibiu terminantemente a Isabela de se aproximar de mim. Isabela tem escrito várias cartas, mas o maldito chefe de polícia segura todas na hora da revista, deixando que entre somente as refeições endereçados pelas duas almas boas que tenho guardado dentro de peito, num cantinho secreto. Não fossem elas, eu estaria literalmente perdido nesse maldito cafundó de mundo. Quando sair daqui (prometi solenemente a mim mesmo) me vingarei. Comerei o delegado Chinfrânio Carrapeta no tapa e, de contrapeso, palitarei os dentes com o outro policial que não sabia o nome. Ou melhor, agora eu posso identificá-lo onde estiver. Roubei o distintivo que o sujeito usava quando me colocava no xilindró. O trocinho traz, na parte traseira, seu número de inscrição nas fileiras da polícia civil.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza. De Itapetininga, São Paulo