Trágico despejo
Não consegui separar este infeliz episódio doméstico do conflito israelenses versus palestinos. Ele talvez seja o que melhor representa o desvario humano atual.
Aquele galho da árvore do jardim cresceu demais. Estava obstruindo a passagem e tapando a visão. Há tempos pensei em podá-lo, adiei. Ele cresceu ainda mais. De novo compreendi que era preciso podá-lo, de novo adiei. Nem lembro o motivo de tantos adiamentos. Hoje parece-me que foi um simulacro daquelas muitas negligências que vamos cometendo, até que suas consequências tornem-se trágicas.
Então, tarefa inevitável, uma tarde decidi enfim pegar as ferramentas para a necessária poda. Sem a devida atenção, acho que com aquela pressa de quem teme outro pretexto para um adiamento, realizei a tão postergada poda. Não foi fácil, tanto adiamento já fizera aquele galho avantajar-se. Foi necessário um suado esforço. Depois, recuperando o fôlego e as forças, sentei-me na mureta próxima, apreciando a passagem e a visão mais franqueadas, graças à ausência do estorvo do amputado galho.
Foi então que aquele inquieto beija-flor chamou-me a atenção. Ele esvoaçava em torno do galho caído no chão, pairava, inspecionava as ramas, tenho a impressão que olhava para mim. Aproximava-se do galho caído por um lado, pairava, ia para outro lado, pairava de novo, parecia atormentado procurar por algo. Despertou minhas lamentáveis suspeitas.
Com a ajuda da esposa fomos verificar o galho cortado com mais atenção. Após alguma procura, descobrimos nele a razão da angústia da extremosa mãe beija-flor: um pequeno ninho, caprichosamente tecido com delicadas fibras vegetais, talvez das alvas painas de paineiras, bem fixado num ramo do galho decepado. E, no chão, dois restos quebrados de minúsculos ovinhos brancos.
Que arrependimento! Como pude amputar o galho sem antes uma minuciosa inspeção? Como pude adiar a poda até a época da reprodução dos passarinhos e não tomar esse mínimo cuidado? Ainda tentei toscamente remediar o crime cometido, prendi com fita crepe o delicado ninho noutro ramo perto, com mais ou menos o mesmo calibre do anterior. Uma baldada tentativa de um absolvedor resgate.
E ficamos a observar a reação da desesperada mãe, de quem assassinamos os rebentos e destruímos o lar. Depois de aflitivas buscas no galho cortado no chão, ela procurou na árvore. Acabou por encontrar o canhestro arranjo que tínhamos feito com aquele ninho tão primoroso, preso ao galho com fita adesiva. Vasculhou o ninho vazio, procurava os ovinhos. Foi e voltou várias vezes, parecia não querer acreditar. Queria despertar do pesadelo que, de uma vez, destruíra o grande galho que era seu mundo, o ninho que fora construído com tanto zelo, os rebentos concebidos com tanto desvelo.
Afinal a mãe beija-flor desistiu do ninho remendado. Sua reação foi então surpreendente. De graciosa, amistosa e depois desolada criatura, passou a agredir com fúria todos os pássaros que se aproximavam de onde era antes o galho sua morada. Tocaiava pousada noutro galho próximo e, subitamente, com rápidos rasantes, atacava sanhaços, bem-te-vis, rolinhas, canários que desavisados se aproximassem. Cheguei a pensar que atacaria a mim e à minha esposa, caso ousássemos nos aproximar. Constatamos que a dor enlouquecera aquela criaturinha.
Não logramos deixar de fazer o paralelo com o que se vê tão amiúde pelo mundo: criaturas que têm seus territórios, seus lares, suas famílias invadidas e destruídas, podem, de uma conduta antes pacífica e amistosa, tornar-se alucinados e odiosos inimigos, cegos pela dor da perda, da segregação, do desrespeito, da ignomínia.
A desfaçatez transforma a amizade e a paz em ódio. Quando iremos aprender a conviver em paz, cuidando de respeitar o diferente?