Na minha época...
Hoje é comercialmente o Dia das Crianças, e eu nem me impressiono com a data. Fico besta mesmo é com as crianças mesmo, principalmente com as de 2010 pra cá. Impressionado com a sabedoria dessa geração que já nasce com habilidades tecnológicas e número no Cadastro da Pessoal Física da Receita federal do Brasil. Na minha época... Bem, na minha época era diferente.
Parece que vou maldizer a época atual. Não é bem isso não. Ao oposto. Há muito Progresso hoje, e a tendência é piorar. Para melhor, claro. Na minha época... Bem, na minha época era diferente.
Na minha época, criança nascia analfabeta de smartphone, letras cambiais e não sabia sequer o que são comodities. CPF, então, só tirava quando completava maior idade, o que era gravíssimo, porque, sem cadastro na Receita Federal, as crianças até cinquenta anos ficávamos fora das estatísticas oficiais do Brasil. Muitos de nós, inclusive, morríamos antes.
Assim, na minha época, era difícil mensurar quantas éramos, onde estávamos, se estávamos: a maioria de nós já nascia analfabeta, idosa, invisível, destinada a morrer antes de ter nascido oficialmente.
Na minha época, pode-se dizer, eram exigidas das crianças habilidades menos complexas do que as requeridas às crianças de hoje. Mas nem por isso mais fáceis. Se por um lado não precisávamos oficialmente saber manusear um smartphone, calcular raiz quadrada, utilizar a contento o GPS, saber o conceito metafísico do que venham a ser comodities, precisávamos demonstrar logo cedo habilidades laborais, distinguir uma jaca madura de uma verde apenas com alguns cocorotes no casco, aplicar nossa intuição tendo o céu como meteorologista, saber montar em animal brabo...
Na minha época, éramos menos metódicas. Não nascíamos pensando no que seríamos quando crescer. Até porque a gente quase não crescia; ficávamos invisíveis para sempre. Mas tínhamos hora para dormir. (Segundo as estatísticas, as crianças de hoje não dormem mais.) O Sol e a Lua eram nossos principais relógios. Não havia trânsito de gente ou de automóveis na minha época, e quase nunca nos atrasávamos, porque nossos compromissos, e eram muitos, ficavam muito próximos de nós tanto quanto nós deles.
Na minha época, pode sugerir que estou sendo egoísta, não era minha época. Era de muita gente, aliás pouca gente, que era uma época difícil, não que hoje seja uma época fácil, mas não era minha época, não era nossa época, e a cidade era distante, e poucos de nós chegaram a conhecê-la. Falta, porém, fazia nenhuma. Para que nos serviria a cidade? Por acaso, sabíamos do que se tratava?
Parece que vou maldizer a época atual. Não é bem isso não. Ao oposto. Há muito Progresso hoje, e a tendência é piorar. Para melhor, claro.