O GÊNIO

Hoje foi o dia mais feliz da vida de Marquinhos. Numa só toada, durante um banho tomado a contragosto, conseguiu realizar vários desejos, tão antigos quando impossíveis. E a realização de desejos tais como os que Marquinhos havia acabado de realizar, só seria viável por obra de um gênio da lâmpada. No caso, não exatamente da lâmpada, pois o que apareceu na manhã de hoje, no banheiro de azulejos coloridos, veio direto da garrafa de shampoo vazia em forma de carro de corrida que Marquinhos espremia tentando extrair de dentro algo além do ar. E não surgiu ostentando aparência extravagante, mágica, lúdica, pois era uma cópia nítida e perfeita de Marquinhos. Um clone, como se diz.

Como se falasse para a própria imagem refletida num espelho, disse o “gênio” para o incrédulo interlocutor: “Sei muito bem o que você quer, por que quer e quando começou a querer; sei tanto sobre você quanto sobre mim mesmo, mas vou tentar manter a tradição (nem tanto, na verdade) e te dizer que você pode me fazer três pedidos, dos quais vou realizar apenas um”. Contudo, antes que Marquinhos movesse os lábios para esboçar o primeiro pedido, o Clone/Gênio disse “está bem, desejo realizado, aproveite; mas antes de ir embora gostaria de confessar que não faço ideia do que você estava para me pedir, não leio pensamentos, mas acertei o alvo e é isso que importa, afinal. Adeus”.

Ao ver o Clone/Gênio se liquidificar num líquido esverdeado e espesso como shampoo e descer pelo ralo da pia, indo embora para sempre, Marquinhos, embora não pudesse constatar pelos sentidos mais imediatos a realização de sua vontade, sentiu que esta havia se realizado - seus maiores desejos nunca estiveram, pelo menos de maneira direta, na categoria das coisas palpáveis e tangíveis, mas no lado metafísico da realidade, no âmbito espiritual, por assim dizer. A partir de agora, ele poderia ficar o dia todo em casa, comendo o que quisesse, fazendo o que quisesse, ou ir para onde quisesse, a hora que quisesse, com quem quisesse, na velocidade que quisesse, da forma que bem desejasse; tinha acesso a qualquer lugar, sem custos, sem censuras, sem penalidades, sem gasto de energia.

Certa vez, numa roda de amigos, questionou o que cada um deles escolheria se lhe fosse concedida uma oportunidade única de expor um desejo – e ser plenamente atendido. Entre respostas óbvias, repletas de devaneios e extravagâncias de cunho onírico e consumista, Marquinhos disparou: “queria viver sem fazer esforço”. A resposta, tão abstrata quanto rápida e objetiva, causou, vindos de todos os lados, risos baseados mais em incompreensão do que em desejo de ridicularizar o anunciante. Entretanto, depois de uma discussão atropelada sobre o que seria “viver sem esforço”, todos concordaram em que isso, no fim das contas, talvez fosse melhor do que ganhar uma viagem para um país idealizado ou todos os videogames de última geração. Viver bem e plenamente, sem ter que se esforçar para isso, é uma espécie de poder que só os Deuses têm. Os amigos de Marquinhos não chegaram a essa conclusão por meio de uma argumentação filosófica, madura, mas podiam senti-la, como Marquinhos sentiu que o seu desejo havia sido realizado pelo Clone/Gênio.

Vestindo um roupão com estampa de motocicleta clássica nas costas, Marquinhos, embora satisfeito e empoderado, não conseguiu se decidir com precisão e honestidade sobre o primeiro passo a dar, nos primeiros minutos da vida nova. Perdia-se no vasto campo de possibilidades e direções que se abriam diante dele como a luz que se revela a um bebê recém saído do útero materno, após longos meses de gestação. No alto de seus cinquenta anos de idade, não tinha a menor ideia de como lidar com aquilo. Sentou-se então na poltrona que preenchia com certo exagero o canto esquerdo da saleta da quitinete e se entregou ao velho hábito de puxar os fios de cabelo do cavanhaque inteiramente grisalho, enquanto esperava a esposa chegar do trabalho. Ela certamente saberia o que ele deveria fazer dali em diante.

João Pegado
Enviado por João Pegado em 10/10/2023
Código do texto: T7905310
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