O PAPEL CARBONO

Sou dentista há 39 anos, formado pela Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Alagoas.

Fiz todo meu “científico” no Colégio Marista de Maceió, mas confesso que de lá não sinto saudades. Saí do meu interior alagoano Viçosa, do Colégio de Assembléia do prof. Isnard (que se mostrou no filme São Bernardo um excelente ator de cinema mudo), direto pra esse Colégio totalmente elitizado e com a grande maioria de alunos ricos e “filhinhos de papai”! Eu na minha humilde condição financeira de matuto do interior, usando boné da Pitú, caí naquela escola, fruto da amizade que meu querido e amado tio Frei Leão tinha com os irmãos Maristas e tambem, claro, pelo excelente ensino deles pro vestibular. Nessa época eu morava com meus avós no bairro da Gruta de Lourdes em Maceió. Meus pais ainda residiam em Viçosa.

Foram 3 anos de agonia pra mim, pois raramente saía da sala nos intervalos. Eu inventava que ia atualizar algumas matérias e ficava “estudando” na minha carteira. Fui apenas 3 vezes na lanchonete do Cabeleira, pois pra lanchar, tinha q ter dinheiro. E nem sempre eu tinha.

Concluí o científico em 1978. Eu tinha 16 anos de idade.

Pois bem, meu primeiro vestibular foi em 1979, e inventei de fazer Medicina. Nessa época a UFAL e as CIÊNCIAS MÉDICAS (hoje UNCISAL) tinham as provas no mesmo dia! Não sei quem inventou essa brincadeira de mau gosto! Dessa forma os alunos escolhiam por prestar o vestibular em uma ou na outra faculdade de Medicina. Optei pela UFAL! E…perdi. Ao olhar quantos pontos fiz, percebi que minha pontuação daria pra ter passado nas Ciências Médicas! Então o que um ser humano normal faria? Em 1980 tentei novamente Medicina, mas agora não mais pela UFAL! Levei “pau” novamente. Descobri q nesse ano de 1980 com os pontos que fiz nas Ciências Médicas eu entraria na UFAL! Tudo mudou de um ano pro outro. Eu pensei, “não é possível uma coisa dessa! Inverteu?”.

Então, resolvi desistir de MEDICINA. Achei q era um aviso dos céus dizendo que não era pra mim e que eu não merecia fazer esse curso.

E, como quase todo vestibulando que faz MEDICINA e não passa, a opção é por qual curso? Isso mesmo, ODONTOLOGIA. E assim foi feito e passei em 2° lugar na UFAL.

Mas o intuito dessas linhas não é esse, e sim contar o inusitado que aconteceu no dia em que passei no vestibular.

Em 1980 fui nomeado através de um Concurso Federal como DATILÓGRAFO da Universidade Federal de Alagoas e estava trabalhando na Pró-Reitoria de Pós- Graduação e Pesquisa/ PROPEP. Modéstia à parte eu era um bom datilógrafo. Nesse período o curso de datilografia era fundamental na definição de candidatos em concurso público. Foi pensando nisso que meu tio Frei Leão (olha ele novamente em minha vida) me orientou a fazer esse Curso numa Escola na Rua Do Sol, Maceió. As vezes não tinha com quem deixar meu companheiro Sagüi e eu o levava junto comigo pra estudar incansavelmente os ASDFG e ÇLKJH, onde o espaço teria que ser com o polegar direito ou esquerdo. Juro que eu conseguia mais de 140 caracteres por minuto! E o sagüi no meu ombro com olhar de soslaio pra máquina Olivetti.

Então eu trabalhava como datilógrafo e meu chefe era o pró-reitor general médico Dr Nabuco Lopes. Uma competência, mas que tinha uma forma de escrever os ofícios e documentos únicos! Letra miúda e cheia de rabiscos e ajustes, emendas que tomavam uma página inteira. Era complicado de decifrar as escritas dele. Mas eu conseguia sempre. Dr Nabuco chegava muito cedo (militar né?) e eu já estava de prontidão na máquina elétrica IBM. Ele dava bom dia e atravessava nossa sala pra chegar até a sala dele.

Um dia, eu absorto datilografando um documento que ele pediu urgência no final do dia anterior, e Dr Nabuco chegou e passou pra sala de, eu juro que não percebi. Ele era discreto e tinha sempre um fungado antes de falar qualquer frase. Não deu 2 minutos e a Secretária dele chegou na minha frente e com um sorriso maquiavélico disse:

- Doutor Nabuco quer falar vc, Marcos.

Eu já fiquei nervoso (General né? Em pleno 1980!) Levantei e fui até a sala dele:

- Sim doutor. O senhor me chamou?

E ele olhou sério pra mim e fulminou:

- O que você tem contra mim?

Perguntei já quase desmaiando:

- Euuuuuuuu? Nada doutor!

E ele:

- porque eu entrei, dei bom dia e vc além de não responder, nem levantou a cabeça de olho na máquina! Que houve?

Eu jovem, 17 pra 18 anos respondi tremendo:

- doutor Nabuco, eu não vi o senhor entrar! Estava tão concentrado no documento que o senhor deixou com urgência para eu datilografar q não vi! Me desculpe!

Ele aceitou as desculpas balançando discretamente a cabeça e eu saí e quase bati continência pra ele!

Depois desse dia, toda vez q ele entrava, eu respondia bem alto o “bom dia” e levantava a cabeça até mostrar o gogó!

Mas, vamos ao que interessa. É que quando a gente vai escrevendo, vem muitas lembranças na cabeça.

Então, fiz o vestibular de Odontologia na UFAL. E confesso que gostei muito das provas. Pra quem vinha 2 anos estudando pra Medicina e mantendo um ritmo forte de estudos, a Odontologia que não tinha a mesma concorrência, ficaria mais fácil de ter êxito!

Então chegou o dia do resultado do vestibular!

Eu fui trabalhar logo cedo na PROPEP. E nessa época a Reitoria funcionava na Praça Sinimbu, no Centro da cidade de Maceió. Era lá que os computadores emitiriam o resultado no final da tarde, no Núcleo de Processamento de Dados/NPD, no início da noite, após a “Hora do Brasil” das rádios brasileiras. Os resultados saiam em folhas grandes computadorizadas e picotadas em 2 cópias, porque essas folhas tinham um papel carbono entre elas. Pois bem, tinha no setor que eu trabalhava pessoas da limpeza e um deles eu tinha certa amizade. Então do nada, ele me falou que estava escalado pra limpar a sala dos computadores, NPD, de onde sairia o resultado do vestibular. Eu, brincando com ele, falei:

- Chiquinho, veja lá se vc descobre se eu passei! Meu curso é Odontologia. Será que tu consegue?

Ele disse:

- Oxe, tu é doido? Tem chance não! Lá tudo é fechado! Um segredo da bixiga.

E eu ainda retruquei, dando idéia…

- Mas tu não vai limpar a sala? Pega os carbonos do chão! Olha meu curso, é ODONTOLOGIA!

Repeti o curso, mas sem lógica alguma ! Coisa de garoto sonhador.

Pronto. Acabou a manhã, fui almoçar em casa e voltei pro batente de 14:00. Até esqueci meu pedido ilógico ao Chiquinho da limpeza. Foi um dia de muito nervosismo e falta de concentração. Vestibular é muito forte na vida de qualquer jovem. Ali está seu futuro! Ali está sua profissão! Ali pode está uma carreira brilhante ou não, mas uma profissão que vc pode ter pro resto da vida! E nesse dia minha cabeça estava cheia de pensamentos.

Quando deu 15:40, me lembro como hoje, chega Chiquinho naquela farda dele azul, e pede pra falar comigo. Saio da minha sala e vou até o corredor em frente à PROPEP.

Eu gaguejando perguntei:

- que houve chiquinho? Tu viu alguma coisa?

Ele coçando a cabeça, falou:

- rapaz, vi nada!

Eu desconfiado vi que ele não iria até minha sala pra dizer simplesmente isso. E insisti:

- Chico, pelo amor de Deus, vc tem algo a me dizer? Seja o que for, me fale!

Ele todo sem jeito falou bem baixinho:

- depois eu falo e aparece alguém aqui de cabeça raspada e eu me lasco todinho!

Meu sangue foi pro pé! Tonteei e ele me disse:

- vamos ali no banheiro que quero te mostrar uma coisa.

Parecíamos dois gângsters jovens com drogas escondidas!

Ele colocou a mão no bolso e tirou um papel carbono, repito: papel carbono, e perguntou:

- teu nome completo é MARCOS ANTÔNIO SILVA PEIXOTO?

Falei q sim, e ele me entregou o carbono. Coloquei de encontro à janela q batia o sol e vi a relação (de trás pra frente) do curso de ODONTOLOGIA!

Li assim: AIGOLOTNODO

Meu nome estava entre os aprovados! Eu não acreditava naquilo! Diante de tantos cursos e tantos carbonos espalhados pelo chão, Chiquinho localizou o meu curso!

E ele diante de minha alegria incontida, falou:

- Marcos, foi Deus! Foi o primeiro carbono que peguei, pq éramos 4 faxineiros e esse carbono tinha seu curso! Enfiei no bolso discretamente e vim te mostrar! Agora me desculpe mas não posso te dá!

Lembrei de novo do Tio Frei Leão rezando. Dei um abraço de agradecimento e Chiquinho colocou o pedaço de carbono no seu bolso novamente, com medo de ser descoberto e perder o emprego. E foi embora! Eu numa euforia imensa tive q voltar pra sala e engolir essa felicidade total! Não mais me concentrando em nada, pedi a Chefe pra sair mais cedo, justifiquei que não estava legal e a secretária executiva me dispensou.

Peguei o ônibus Pajuçara/Ponta da Terra e fui embora pra casa. Nesse ano meus pais já estavam em definitivo em Maceió. morávamos na Ponta da Terra, rua Firmino Vasconcelos 427, com minha mãe e pai e meus 5 irmãos. No caminho pra casa fui pensando mil coisas, inclusive em fraudes de vestibular que tanto se falava que podia existir. Imaginei até que essa lista era “extra oficial” e sendo a primeira (essa do carbono que eu vi e não tinha mais as “provas” pq chiquinho não me deu) e imaginei que talvez a partir desse momento era que podiam retirar os nomes de quem não tinha influência alguma e colocaria no lugar o nome de quem perdeu e de alguma forma tinha prestigio! E, claro que meu nome poderia está entre os renegados. Fiquei preocupado!

Ao chegar no ponto pertinho de casa, vi a Farmácia Ana Paula, desci do ônibus e tive uma idéia genial:

- vai q eu passo então preciso tomar uma injeção de algo forte pra aguentar a farra - Entrei na farmácia e perguntei ao dono, Seu Paulo, e ele indicou Glucornegan com Glicose na veia. Era um suplemento vitamínico, que proporcionava doses extras de energia aos usuários. Lembrei imediatamente dessa injeção pq meu tio Ronaldo Lima as vezes tomava pra aguentar os fins de semana de muita farra. E Paulo aplicou. Segui a pé direto pra casa e já me sentindo mais forte!

Ô q bestão…

Chegando em casa, minha vizinha Léa, ela que estava se submetendo ao vestibular de Nutrição, ao me avistar perguntou :

- E aí Marcos, confiante hj?

Eu na hora falei:

- Tenho certeza que vou passar. Algo me diz isso !

E ela me aplaudiu gostando da minha autoconfiança.

Entrei em casa e meus irmãos e meus pais todos com semblantes de preocupação. Eu fui logo dizendo:

- Estou com absoluta convicção que vou passar! Inclusive vou botar meu gravador Philips pra gravar quando sair o resultado no rádio!

E todos olhando pra mim sem acreditar nesse otimismo todo! Ficaram eufóricos, principalmente meu irmão mais novo, o Nício que tinha 6 anos de idade. Ele me abraçou e falou:

- Tu vai passar! Eu tb acredito.

Peguei 2 copos daqueles pra cachaça e coloquei Rum Montilla pura. E decretei:

- Assim que sair na lista meu nome no rádio, eu viro esses dois copos de Rum! Ninguém mexe, viu?

E fui tomar banho pra esperar o resultado que saía assim que acabasse a HORA DO BRASIL.

Troquei de roupa e fiquei na sala num pé e no outro. Minha namorada a Régia estava na casa dela, e também na expectativa do resultado, porque ela fez vestibular de Serviço Social. A festa seria dupla. Assim esperávamos.

E chegou a hora … todos ao redor do rádio e eu no meio deles aguardando a lista de Odontologia! Eu segurando aquele segredo do Chiquinho e do papel carbono. Estava uma pilha de nervos.

Enfim no rádio começaram a ler a lista dos aprovados em ODONTO. Liguei o gravador.

E por ordem alfabética foi: Adaída, Antiogenes, Carlos, Claudia… Ivana, Jaime, Luiz… Magda, Márcia e… Marcos Antônio Silva Peixoto! A gritaria foi imensa na minha casa, peguei um copo de Rum montilla e virei… de um gole só. E quando olhei do lado, meu irmao mais novo de 6 anos estava terminando de virar o outro copo de Montilla, tamanha a alegria que ele sentia!!!!

E eu:

- Niciooooo! Tu é doido???

Ele rindo e fazendo uma careta grande, me abraçou! Papai correu pra geladeira pra pegar as bebidas e começamos a farra com os irmãos. Muita alegria e emoção. Mamãe chorava, papai emocionado e as cervejas sendo abertas. Descobrimos que Régia também tinha passado em Serviço Social e aí é q eu bebia ainda mais. Resultado, eu e Nício ficamos bêbados rapidamente. Régia chegou eufórica na minha casa, com seus tios pra gente sair e comemorar no bar Ipaneminha, e eu prostrado numa cama, com metade da cabeça raspada e na outra cama, tambem com a metade da cabeça raspada, estava meu irmao Nício! Estávamos bebados de não conseguir levantar! Uma criança de 6 anos!

Olhei pra Régia e com a voz engrolada dei meus parabéns pela vitória dela e falei:

- vá embora comemorar com sua família. Eu não vou conseguir sair dessa cama de jeito nenhum!

Toda a rua em festa, alguns amigos e familiares chegaram na minha casa, inclusive minha vizinha Léa, que também passou, todos comemorando e eu junto com meu irmão Nicio bêbados! Foi um desperdício…

Um dia pra não esquecer, mas que pela tensão, não consegui mais aproveitar o restante da noite!!!! E a injeção na veia de nada serviu.

O barbeiro que se virasse no outro dia pra raspar totalmente a minha cabeça e a do Nício! De ressaca e tudo…

Peixoto Marcos
Enviado por Peixoto Marcos em 09/10/2023
Código do texto: T7904521
Classificação de conteúdo: seguro