Balas, Amou Haji, maçãs

Li, há pouco, que, no Rio de Janeiro, houve uma chacina anteontem em que três médicos foram executados. Tomavam umas cervejas em um quiosque, depois da meia noite. Batiam papo, ouviam e viam o tempo passar, sem pretensão agendada, e de repente tudo findou para eles. MOTIVO: Parece, segundo as notícias bélicas extraoficiais, que uma das vítimas do massacre era parecidíssima com um miliciano.

O mundo está mesmo, e falo sem surpresa alguma, cheio de notícias violências. Hoje muito mais do que antes, do que na época da tentadora Eva, das cavernas, dos discos de vinil, dos relógios de bolso, do perfume Carisma. O mundo aumentou bastante desde então, em gente, automóveis, inflação, balas voadoras.

Não quero dizer, com isso, que a culpa é do Progresso, ou integralmente da maçã. Longe de mim creditar toda a desumanidade no mundo ao inventor dos mortais projéteis, ou ao saboroso fruto. Às vezes, depois do almoço, gosto inclusive de comer maçã. Uma apenas, já é o suficiente, já faz efeito, inclusive aos domingos: faz-me sentir-se tão vivo, saudável e com dentes limpos.

Mastigando-a, pego-me geralmente pensando na vida e me faço quase sempre a mesma pergunta besta de sempre: "Meu Deus, bem que a vida poderia ser doce, saudável e bela, feito esta maça".

Nesse instante, aproveito a deixa, e lembro-me de Eva, uma das mais humanas e eternas das mortais. Que culpa teve Eva, se maça é doce, e saudável, e saborosa, e bonita? Quero dizer objetivamente isto: balas e maçãs não combinam. São antagônicas, incompatíveis. Subjetivamente, parece que digo mais: a vida, tal qual me disse um simpático bêbado sóbrio e anônimo outros dias, é impressionantemente: há quem ganhe a vida sendo sósia de celebridade, há igualmente o oposto.

Entre ambos, há balas ou maçãs. Jamais ambas.

Basta, por aqui e provisoriamente, de noticias violências. Afinal, hoje é sábado: é preciso mostrar a outra metade da maça, quero dizer, a outra metade do Oriente Médio. Nem só de notícias letais vive a desumanidade. Nem só de balas voadoras morre-se.

Tomar banho, por exemplo, também pode ser letal. Li, há pouco, embora a notícia seja antiga, mas serve como alerta. Li, em uma coluna de curiosidades, que um eremita que ficou conhecido pela imprensa como "o homem mais sujo do mundo" morreu aos 94 anos, apenas alguns meses depois de tomar seu primeiro banho em décadas.

Amou Haji chamava-se. Passou mais de meio século longe de água e sabão, temendo que o deixassem doente, com receio de que baixassem sua imunidade natural. Mas, após muita insistência coletiva, caiu na besteira de ceder. Inventaram de dar banho em Amou Haji. Pouco meses depois, Amou Haji morreu.

Não sei dizer se Amou Haji tinha o hábito de comer maçã, inclusive aos domingos. Não insinuo que maçã poderia tê-lo salvado a vida. Se assim fosse, Eva não teria sido Eva, e a religião mundial seria outra. Mas o interessante é que desconheço, e julgo que não apenas eu, várias pessoas desconhecemos notícias de pessoas que morreram porque não tomaram banho. Em contrapartida, milhares ou talvez milhões morrem afogadas anualmente. Mortes por balas perdidas ou confundidas, então, nem se contam.

Como se percebe, a vida anda muito distantemente longe das maçãs.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 07/10/2023
Reeditado em 07/10/2023
Código do texto: T7903081
Classificação de conteúdo: seguro