Meu porto seguro

Existe uma teoria que sempre me acompanhou, acabando por se tornar uma máxima mais que verdadeira para mim: “Você é fruto do meio em que vive”.

Em diversas digressões, o ser humano foi retratado como um ser sociável, busca ser aceito no meio em que vive e por vezes, mesmo sentindo dificuldade em se relacionar, necessita disso para sobreviver no ambiente social em que está inserido seja pelo nascimento ou pelas consequências de suas escolhas em vida.

Pois bem, todas essas digressões findam nessa máxima.

Muitos vão questionar minha teoria – sua máxima é furada – “a personalidade é quem define o ser humano”. Bem ...até concordo, mas há outra teoria que diz que a personalidade é forjada até os sete anos de idade, então o meio em que ela convive até lá irá forjar a personalidade dela.

Esse meio social onde suas doutrinas são determinadas desde a infância faz com que você acredite fazer parte de algo maior do que sua existência. Contribuir para perpetuar se torna uma obrigação.

Desde a infância a doutrina na minha casa foi: nós precisamos ser um exemplo a ser seguido, as pessoas precisam nos ter como um norte social, uma família unida e perfeita.

Bem, não sei ainda o significado da palavra perfeição, mas era isso.

Toda a família se portava como se nada tivesse de errado em nós, não falo só do ciclo fechado, mãe e filhas, mas todo o clã familiar.

Pouco se sabia de defeitos ou erros cometidos.

Acho que nunca me ajustei a esse modelo, mas o tinha como a única forma de viver.

Nunca nos foi permitido brincar com vizinhos, ter amiguinhos que frequentavam nossa casa ou vice e versa.

A única versão do mundo que conhecíamos era o meio em que vivíamos. Mesmo dentro do núcleo familiar haviam nortes a serem seguidos.

Talvez por eu ser a “rapa do tacho”, sempre fui incentivada a seguir o exemplo de uma de minhas irmãs, ela era meu modelo.

Assim, o ciclo se fechava ainda mais.

O meio social era tão restrito e rígido que qualquer passo em falso desencadeava uma bela de uma surra.

Na infância, minhas irmãs eram as únicas coisas que eu reconhecia como algum tipo de carinho, cuidado. Elas sempre fizeram o papel de minha mãe.

Minha mãe trabalhava muito, havíamos perdido meu pai e éramos muito pequenas para compreender a extensão de tudo isso. Com o falecimento do meu pai todas as obrigações maternas e paternas recaíram sobre a matriarca da família, assim o cuidado mais íntimo, as conversas, histórias para dormir, banhos, estudos, fatos corriqueiros do dia a dia eram exercidos pelas minhas irmãs mais velhas.

Mesmo com uma pequena diferença de idade entre mim e minha irmã, essa em quem eu deveria me espelhar, era uma das que cuidavam de mim, não sei se eu era a boneca dela ou sua filha, me ajudava com as tarefas, me comprava para fazer as coisas erradas que ela não tinha coragem.

Se me carregava no colo ou dava comida na boca, era certeza que eu tinha xingado, cuspido ou batido em alguém a mando dela. Éramos inseparáveis.

Na adolescência minhas irmãs mais velhas se afastaram um pouco, seja pelo casamento ou pelos estudos e trabalho, com isso minha aproximação com minha irmã modelo se estreitou e eu sentia raiva de ser constantemente comparada a ela.

Sempre perfeita, estudiosa, boa filha, obediente, que nunca deu qualquer tipo de trabalho para minha mãe. Já eu era o capeta em forma de gente, tirava notas baixas, brigava na escola, xingava, desobedecia, não era de muita conversa – na verdade não sou até hoje –.

Acredito que, como uma forma de contradizer tudo aquilo, começamos a brigar e a nos desentender, mas ainda assim ela sempre esteve ali, seja para me ajudar com a escola, encobrir as minhas saídas escondidas, cuidar de mim, mesmo querendo me matar as vezes por deixar nosso quarto uma zona, por pegar as roupas dela sem pedir, por simplesmente não querer nada com nada da vida.

Na fase adulta a culpa começou a me consumir por completo, eu não era, nunca fui como minha irmã modelo.

Não era, nem de longe um exemplo a ser seguido, pelo contrário, fui contra toda a minha base familiar.

Me assumi lésbica aos 16 anos, algo que ninguém daquele meio social sequer havia ouvido falar tão intimamente. Não havia qualquer membro da família que pudesse me livrar do peso de ser a única, por essa razão me afastei de todos por um bom tempo, sem contato, sem acesso, não podia impingir a eles a dor e o peso de ter uma filha, uma irmã desajustada.

A primeira que soube sobre mim foi ela, minha irmã-exemplo, me pegou em uma situação muito constrangedora. A cara que ela fez é inesquecível para mim, mas mesmo dela eu me afastei.

Voltando a máxima inicial, sendo fruto do meio em que vivia tinha como única forma correta o modelo instituído. Tudo o que eu mais queria era ser aceita, mas isso sempre se mostrou impossível. Para ser aceita eu, obrigatoriamente, necessitava abdicar de tudo em mim, meus desejos, minha forma de amar, meus conceitos sociais, para ser aceita eu precisaria me tornar outra pessoa. Pelo menos era no que acreditava até então!

Com o tempo as coisas foram se ajustando e um chamado para passar o final de semana na casa de minha mãe me surpreendeu, uma surpresa ainda maior me pegou quando essa minha irmã cedeu sua cama e seu quarto para que eu e minha companheira pudéssemos dormir. Éramos um casal e estávamos sendo tratadas como tal.

A partir desse momento o resgate social aconteceu, mesmo não sendo algo normal para aquele pequeno círculo estava tudo “tranquilo”, mas da porta para fora erámos amigas que dividiam uma casa.

A culpa por não oferecer ao meu meio social o que eles esperavam de mim era quase insuportável, então uma maior aproximação nunca foi possível.

Minhas irmãs casaram, cada uma com sua família “tradicional”, tornaram-se independentes financeiramente e deram os esperados netos a matriarca da família. Eu, casada com uma mulher, o que por si acabava com todo o resto.

Por toda a culpa que me consumia passei a buscar alguém, uma mulher que se encaixasse nesse meio social, que pudesse afastar a ideia de que o fato de ser uma mulher fazia diferença, alguém perfeito para os padrões os quais me foram impostos desde a infância.

Acreditava piamente que estando com alguém que minha família visse como um exemplo a ser seguido, eu conseguiria me encaixar e ser feliz.

Na verdade eu não me aceitava como era, não aceitava o fato de não ter seguido o exemplo das minhas irmãs, não aceitava o fato de não fazer parte do mundo perfeito, da bolha de proteção criada em torno da nossa família, do nosso meio social.

Nunca me senti suficiente, sempre acreditei que não importasse minha profissão, a casa chique que poderia ter ou quanto dinheiro poderia ganhar, nada supriria a verdade: Eu não me encaixava.

Sim, minha irmã se tornou mais que um exemplo a ser seguido, se tornou meu Norte, minha moral, meu conceito de vida, uma mulher forte, decida, guerreira, bem-sucedida, com uma família linda.

Era quem eu queria ser! Não por inveja, mas por ser ela tudo em que eu acreditava.

Nessa busca, perdi pessoas que marcaram minha vida para sempre, por não acreditar que elas pudessem se encaixar nesse meio social, pessoas que hoje acredito que eram tudo o que eu realmente queria e precisava naquele momento.

Procurei pessoas que retratavam exatamente esse exemplo, como uma forma de por elas ser aceita. Mas o que encontrei foi o fato de que elas foram aceitas, eu não, eu jamais encaixaria no meio em que eu sempre sonhei me encaixar não só por ser lésbica, mas por ser diferente.

Depois de mais de trinta anos me digladiando entre a raiva e a culpa, percebi que eu não tinha culpa de ser quem sou, que precisava me perdoar por não me encaixar, precisava perdoar os outros por não me entenderem. Cada um tem seus conceitos e suas cruzes a carregar.

Com isso, para meu total espanto, por diversas provas divinas tive a comprovação de que quem importa se importa, esse meio social, o qual sempre me preocupei em agradar e ser aceita, me aceitava como eu sou, sem questionar, na verdade até cobrava mais contato, atenção, coisa que eu não sabia como dar.

Para me proteger, me afastei tanto que o resgate desse contato mais próximo era algo muito distante para mim.

Percebi que mesmo não sendo o que eles queriam que eu fosse, não importava, eu fazia parte do meio, era filha, irmã, tia e tudo o que ansiavam era que eu me aproximasse e permitisse que eles fizessem parte da minha vida.

O mais importante hoje é que percebi que aquela minha irmã em quem eu deveria me espelhar, que me segurou pela mão, me guiou pela escuridão, não era meu espelho, nem eu o dela.

Percebi que ela sempre foi meu porto seguro, aquele lugar ao qual se pode velejar por diversos oceanos, passar o tempo que for à deriva, sempre que precisar de um aporte saberei onde aportar, é meu motivo para voltar, por vezes até minha razão para ficar.

Hoje sei, não importa quem ou como eu seja, não tenho do que me envergonhar.

Nunca vou ser espelho de ninguém, mas sei que sempre terei um porto seguro, não para me apoiar, mas na certeza de que não importa por onde ou com quem eu ande, ele sempre estará no mesmo lugar – a meu lado, na certeza de que eu posso voltar e ficar sem medo de não ser aceita, sem medo de decepcionar.