Lourival Gusmão, amigo irmão
Louro Gusmão, amigo irmão
Gutemberg Armando Diniz Guerra
Engenheiro agrônomo
Recebi um lembrete por um querido amigo contemporâneo da Escola de Agronomia e um dos mais fiéis colegas que amealhei durante a vida, desses que tem memória de elefante. Em poucas palavras me alertava para o aniversário de um outro que partilhou comigo momentos muito especiais de minha vida!
Lourival Soares Gusmão é dessas pessoas vibrantes, das que por onde passa não fica despercebido, seja por sua voz de quem não tem medo de nada, seja pela expressão corporal de quem nasceu para a liberdade e para enfrentar a opressão onde quer que ela tente se instalar e manifestar. Conheci o dito colega nos primeiros dias do curso universitário, ainda em Salvador, quando fomos submetidos a um nivelamento maciço em disciplinas ditas básicas do curso de Engenharia Agronômica da Universidade Federal da Bahia. Matemática, Biologia, Desenho Técnico, Química Orgânica, Geologia Geral, Botânica, Zoologia... Ali tivemos pouca interação, o que mudou completamente quando ficamos ilhados em Cruz das Almas, na fazenda que abrigava a Escola, distante três quilômetros da sede municipal e a 150 km de Salvador, cidade onde nasci e tinha fincado minhas referências.
Lourival era de Ipirá, sertão da Bahia e tinha sido criado e percorrido meio mundo e uma banda de Sergipe junto com Isac, seu pai, vendedor de fumo de corda, chumbo, espoleta, anzol, vara de pescar, carretel de linha, bacia, peneira, pinico, funil, farinha, carne de sol e outras coisas que o mundo rural demandava e ele oferecia.
Nossa primeira aproximação ocorreu quando organizamos um grupo de teatro para preencher nosso tempo com alguma atividade no isolamento físico e cultural que a Escola nos impunha. Fizemos peças de teatro, música, declamação de poesia, serenatas e reuniões políticas para a organização do diretório acadêmico e resistência aos critérios repressivos da ditadura militar que cortava e controlava todo e qualquer movimento gregário da sociedade civil. Encenamos três peças de teatro de nossa autoria e uma do Professor Conceição. Fizemos várias atividades de dança folclórica, capoeira, maculelê e música. Louro era ator e animador destacado no grupo.
Na Escola de Agronomia Lourival foi também um militante de destaque, ameaçado de enquadramento no 477, artigo que punia a atividade política no meio estudantil. Atento e muito perspicaz, tinha amigos organizados em uma corrente militante chamada Viração, liderada pelo então clandestino Partido Comunista do Brasil. Ouvia-se a Rádio Tirana, da Albânia, e comentava-se, a boca pequena, as movimentações de resistência ao governo militar.
Depois de formados, ficamos distantes até nos reencontrarmos, desempregados e à procura de trabalho, em Salvador, no início dos anos 1980. Recebemos e aceitamos uma proposta de trabalho para ser gerentes de Projeto Sertanejo no Semiárido Baiano. Eu em Condeúba, Lourival em Brumado e Israel Just da Rocha Pita em Livramento de Nossa Senhora. Fizemos várias viagens durante mais ou menos um ano, recebendo instruções, compondo equipe, negociando instalações para os profissionais que se engajaram no Projeto e iniciamos os trabalhos de tentativa de fixação dos agricultores em locais de incidência de secas inclementes.
Foi nessa época que fizemos a primeira viagem de avião, de Salvador para Recife. Sentados na mesma linha de poltronas, eu no corredor, o Louro no meio e Pita na janela. A tensão daquela experiência era evidente. Pita incomodado com o cinto de segurança pediu ajuda ao ipiraense que recomendou que o colega seguisse o que estava escrito a frente: aperte o cinto. _Aperta, Pita! E o Louro puxava a ponta do cinto fazendo-o espremer a barriga do gordinho até ele avermelhar as faces e pedir clemência! Ríamos feito crianças diante de um novo brinquedo. O avião começou a fazer a manobra para pegar a pista e ao começar a decolagem o Louro exclama, em voz alta e teatral:_Puta merda! Nasci no Ipirá, antigo Camisão, fui criado montado num burro preto chamado Diamante, que era de meu pai, e agora estou montado em um trem desse, menino! Espocamos de rir e esse verso ficou para sempre grudado em minha memória.
Em Recife, chegamos depois de 50 minutos de vôo e ficamos impressionados com a noção de tempo que se alterava para nós, acostumados a viagens de ônibus e carros pequenos. Era um domingo, fomos ao Hotel e ainda deu para conhecer a Casa da Cultura assistir ciranda, o Mercado de São José, fazer refeição nordestina, beber uns gorós no Alto da Sé de Olinda e nos encantarmos com os rios Beberibe e Capiberibe. Tivemos uma passagem meteórica no Projeto Sertanejo do qual tivemos que nos demitir por pressões políticas que interferiam em nossas decisões técnicas e não nos respeitavam, apesar de todas as metas cumpridas.
Fomos contratados para trabalhar na Companhia de Ação Regional para captar recursos do Governo Federal, Banco Mundial e Interamericano para implantar o Projeto de Desenvolvimento Regional Integrado no Nordeste Baiano, fazendo viagens de campo esquadrinhando onde havia demandas de Pesquisa e Extensão Rural. Sob o comando de Carlos Miranda e Nadia Holtz, vivemos uma experiência profissional muito rica, intensa e culminando com um Curso Internacional de Especialização em elaboração de Projetos de Desenvolvimento Rural Integrado.
Ao mesmo tempo em que trabalhávamos na CAR, participamos da Associação dos Engenheiros Agrônomos em duas gestões, sendo uma delas como presidente e vice-presidente. Foi um tempo de muito trabalho e alegrias, embora com um evento muito triste com a prisão de militantes do Partido Comunista do Brasil durante vários dias. Lourival foi um dos presos e desaparecidos durante os três primeiros dias de prisão, o que nos deixou muito apreensivos do que pudesse vir a acontecer. Submetidos a torturas psicológicas e físicas, localizamos os militantes presos em uma cadeia no Beirú, de onde foram depois transferidos para o Forte do Barbalho. Reuniões com entidades da sociedade civil, sindicatos, associações profissionais, partidos políticos, religiosos e comitês de apoio foram feitas até a soltura de todos eles que continuaram a ser intimidados durante suas vidas civis por disfarçados rondando suas atividades cotidianas.
A marca de Lourival Soares Gusmão é o vigor e intensidade com que vive os seus papeis como pessoa humana. Nesse tempo de celebração de sua vida, fica um brinde a esse amigo irmão, colega de repartição, como diria meu pai. Que sua vida seja plena de felicidade junto com seus filhos Mariana, Pedro e Rodrigo, e os netos que vem chegando para lhe dar motivos pela luta que continua sendo encetada por um mundo justo e fraterno. Tenho certeza de que essas breves palavras terão eco entre os muitos admiradores desse ser humano especial que é o colega aniversariante! Vida longa, companheiro!