Bichos-de-pé, abelhas e carrapatos
Em setembro de 1819, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire passou pela cidade de Uberaba, na época uma vila conhecida como Arraial da Farinha Podre. Vinha de Goiás, numa viagem de estudos e pesquisas, viagem feita em lombo de burro e na qual coletou diversos materiais, em especial da flora e da fauna nativas. No volume em que trata da sua passagem por Uberaba, cujo título é “Viagem à Província de Goiás”, o relato se encerra quando a comitiva atravessa o Rio Grande e entra na Província de São Paulo.
Prato cheio para antropólogos, historiadores, geógrafos, botânicos e outros estudiosos, a obra é rica em observações da paisagem e da vida da população residente nos locais por onde passou. Ele se interessa pelos costumes, pelas línguas indígenas, pelo clima etc. Ler duas ou três páginas já motiva os leitores a empreenderem suas próprias “viagens” e descobertas.
Quando li pela primeira vez, me encantei com a riqueza de detalhes. Fiquei impressionado com sua crítica socioambiental e a perspicácia com que elaborou suas impressões sobre os mais variados assuntos. Como escreveu o jornalista Vivaldi Moreira, nas orelhas da edição de 1975 da editora Itatiaia: “devia ser leitura obrigatória nas escolas”. Não gosto muito do termo “obrigatória”, mas concordo com a ideia de que os livros do ilustre naturalista deviam ser mais lidos e discutidos nas escolas e onde mais for possível.
Ao reler alguns trechos, me espanto com a curiosa história da “prodigiosa quantidade de bichos-de-pé” que o assolam e aos seus companheiros de viagem. Ele conta que, em algum momento da viagem, foi “submetido a dolorosa extração de um bicho-de-pé”. Nessa hora, me lembrei do meu avô orientando meus pais a retirarem os tais bichinhos que se instalavam nos meus pés e nos dos meus irmãos. Em determinadas épocas do ano, voltávamos da fazenda infestados por eles.
O procedimento era mais ou menos o seguinte: esquentar uma agulha no fogo e enfiar pé adentro até a completa remoção do bicho e dos resíduos lá deixados por ele. Que sacrifício tremendo! Não sei o que era pior, se a coceira ocasionada pela presença incômoda ou a complexa operação de retirada do bicho. Jurávamos nunca mais andar descalços ou nos aproximar do chiqueiro da fazenda. Geralmente, toda a meninada era acometida pelo inconveniente inseto, que minha mãe carinhosamente nos explicava tratar-se de uma “pulguinha”, como se isso servisse para atenuar as dores e o medo da agulha. Pior seria uma infecção, justificativa dada por ela para aceitarmos a “tortura” a que erámos submetidos.
Passar férias na fazenda do meu avô nos anos 1960 tinha dessas coisas. Ora eram os bichos-de-pé, ora os marimbondos, abelhas, bernes, carrapatos… Não sei o que era pior. Nada disso atrapalhava nossas andanças, brincadeiras e descobertas, assim como não impediram as viagens do eminente naturalista.
Hoje, me causam maior espanto seus relatos das imensas queimadas e a precariedade das habitações onde ele e seus companheiros pernoitavam.