Rir é o melhor remédio(2)


       Quando as coisas acontecem elas nos parecem trágicas e muitas vezes não conseguimos rir, só chorar. Assim deve ter sido quando eu vim a Lavras pela primeira vez.Minha avó ainda era viva e me trouxe com ela em uma viagem de trem, como sempre. Era o único caminho que havia na época para sair de Arantina: o trem. Mais ou menos a meio caminho de duas cidades relativamente grandes, Barra Mansa e Lavras, esse era sempre o destino de quem precisava de alguma coisa maior. Como por exemplo, fazer a Primeira Comunhão. Minha mãe achou que era chegada a hora e me mandou para Lavras, para a casa de minha tia-madrinha, sua irmã. Até hoje não sei se fui eu quem vim acompanhar a minha avó ou se foi ela que veio me trazer. O retrato mostra uma menina compenetrada, de cara extremamente séria, cara de quem carrega todo o peso do mundo nas costas.Uma tristeza só. Toda de branco, um solidéu na cabeça, permanente recém-feito. Uma menina extremamente adulta. Talvez só eu saiba a razão.

     Bem, a viagem no princípio foi muita boa. Revi primos que amava, visitei parentes com os quais pouco tinha contato, fui ao cinema pela primeira vez. Um cinema maravilhoso, réplica do Teatro Scala de Milão, na época eu não sabia disso, só soube mais tarde quando vim morar aqui e já o encontrei derrubado no chão. Mas isso será outra história. O pesadelo começou mesmo quando os preparativos para a tal de primeira comunhão aconteceram, aqueles dos quais tive que participar. Levaram-me a Igreja Matriz de Sant´Ana, aos meus olhos, enorme. Colocaram-me em uma fila e me disseram: quando chegar a sua vez, ajoelhe-se e confesse os seus pecados.Bem, eu fiz isso. Contei meus pecados. Até hoje não perdôo a Igreja por isso. Eu não tinha pecados, era uma menina, no máximo oito anos e tive que ficar ali desfilando culpas que se manifestaram mais tarde. Mas fui. Confessei. O Padre, um velho alemão, mal falava português, ciciava.Fiquei ali mais tempo que aguentei. Então me levantei e saí. Logo, alguém bateu no meu ombro. O Padre mandou você voltar, menina. Ele ainda não lhe deu nem a absolvição nem a penitência. Acho que foi meu primeiro mico na vida. E meu primeiro pecado. Eu o odiei. Mas voltei. E alí fiquei até ele me mandar embora, ríspido. No outro dia, as coisas não melhoraram. Vestiram-me com aquela roupa horrorosa, toda branca, livrinho de Primeira Comunão e terço na mão e me levaram para a Igreja. A pé. Todo mundo me olhava quando eu passava. Riam e cochichavam. Até que a uma determinada altura eu ouvi uma voz, gritando: Gente, vem ver a noiva na rua, a noiva nanica. Olhei em direção a voz e vi uma menina gorda na janela que se apinhava de gente. Olhei pra cima, mostrei a língua e disse: Sapa gorda! Levantei a cabeça  e desci pela rua. Acho que nunca mais a abaixei. Quando vim morar em Lavras, alguns anos depois, minha primeira ação foi tentar descobrir quem morava naquela casa. Descobri e me dei por satisfeita. Eu era linda e ela continuava uma sapa gorda. Chegamos até a ter uma certa convivência mas eu nunca toquei no assunto. Já estava vingada.

           Bem, minha aventura não acabou aí. Voltamos para casa, eu cheia de histórias para contar. Apesar de tudo eu estava feliz. Foi aí que pouco depois de começar a viagem eu disse:Vó, estou com fome. E minha avó se levantou para pegar o embrulho onde trazíamos a matula: um farnel bem sortido contendo principalmente pão francês com sardinha ao óleo e bastante cebola. Procura daqui, procura dali e nada. Havíamos esquecido o embrulho na casa de minha tia. Como não havia carro-restaurante o jeito foi passar fome. Eu nunca passei tanta fome em minha vida. Eu acho até que realmente foi a única vez que passei fome. Até hoje, quando eu sinto aquela fundura no estômago
a vontade que sinto é de comer pão com sardinha. Não troco pão com sardinha por nada neste mundo.