Contradições (tema sensível - suicídio)
Acordo sobressaltada. As lembranças do pior dia da minha vida dançam em minha mente como um filme a que eu assistisse neste instante. Era novembro, mês insuportável de quente, mas havia chuvas e trovões e um escuro que adentrava mais do que as janelas do nosso quarto. Ela estava ao meu lado, ou melhor, eu estava ao lado dela. Parecia um anjo a descansar de suas dores, tantas dores… era eu quem deveria estar ali definhando, sofrendo e pagando pelos pecados. Eu era a parte podre da fruta, a semente malsã, apesar dos mesmos olhos, da mesma altura, da mesma cor de cabelo castanho claro, apesar da mesma idade, embora eu fosse dois minutos mais velha, tecnicamente isso não importava muito, eu e ela sempre fomos diferentes demais em nossas personalidades e escolhas. Queria tanto trocar de lugar com você, meu amorzinho… Dez anos se passaram e não há um só dia em que eu não me pergunte por que você morreu e eu fiquei. O que você estaria fazendo agora? Com certeza seria ativista de causas nobres, orgulharia ao papai, talvez até tivesse feito uma grande descoberta para o bem da humanidade. Por que você foi e eu fiquei? Você só tinha treze anos, só estava começando a viver aqui. Por favor, me perdoe por não ter conseguido te acordar naquele dia terrível. Eu tentei com todas as forças que me restavam, eu te sacudi para que você parasse de brincar daquela forma comigo, eu te dei um tapa no rosto, porque achei um desaforo você não se dignar a abrir os olhos logo para acabar com aquela palhaçada. Que brincadeira de mau gosto, minha irmãzinha… E me arrancaram de perto de você e te levaram para longe de mim, tão longe que nunca mais pude vê-la. Será que você ainda existe em algum lugar do tempo ou do espaço? Será que um dia poderia reencontrá-la? Eu tentei. Esta foi minha terceira tentativa e percebo, mais uma vez, fracassada. Estou no leito de um hospital, respiro através de algo que está fora de mim, os meus pulmões não funcionam como deveriam, mas o meu coração insiste em bater. Isso não é contraditório? Você, tão ávida pela vida, foi arrancada dela de maneira precoce e infeliz… Eu, que já tentei arrancá-la com as minhas mãos por três vezes, ainda persisto aqui. Talvez haja algum propósito, então? Talvez… Eu cansei de tentar te encontrar, meu amorzinho. Vou ter de viver agora, me perdoe por abandoná-la mais uma vez. Sinto que preciso viver o que não me permiti viver até hoje e sinto que devo isso a você. É provável que você só ouça falar de mim daqui uns sessenta ou setenta anos, quando a morte finalmente me abraçar também. Até! Da sua outra metade…