A Verdade do Joca
Joca é o apelido familiar de um cidadão sui generis. Seu nome é João Carlos.
Nascido com dificuldade, até hoje conseguiu suplantar todo o empecilho que encontra pela frente, ninguém sabe direito como consegue. Mora sozinho numa casa grande, e de lá não sai de forma alguma. Por mais que tentem, com todas as suas pseudo dificuldades, ele é taxativo: “a casa é minha, gosto dela e ninguém me tira daqui.”
- Mas Joca, esta casa é muito grande para você.
- É nada. Dou conta dela muito bem. É minha, não saio daqui.
- Mas uma casa menor seria mais fácil de morar, Joca!
- Não quero saber. Eu gosto dessa, entendeu? – e era muito difícil tentar convencer o eremita dentro da casa grande.
Algumas pessoas, nunca sabemos determinar o motivo, são assim. Não é nada fácil, ou melhor, é impossível tentar convencê-las. O problema seria bem mais fácil de ser entendido a partir do momento que passamos a respeitar a vontade alheia, quando ela é autêntica e não vai de encontro a nenhuma norma estabelecida.
- E para comer, Joca?
- Tenho telefone, basta ligar para onde eu quero e pedir.
- Uma pensão talvez fosse bem mais fácil.
- Eu como na hora que quero, e não gosto de lavagem – era como ele se referia à comida de pensão, por melhor que fosse.
- Prefere esta comida gordurosa de padarias, que só servem para engordar.
- Prefiro, e você não tem nada com isto. – Ficava irritado quando alguém queria impor sua vontade sobre ele. Fora disso, é uma pessoa agradável, conhecedora de assuntos que o cidadão normal não se interessa muito.
Houve época, quando era mais moço, que conhecia de cabeça pelo menos cem telefones de amigos do pai, lojas de ferragem, pontos de táxi, casas que vendem disco. Freguês antigo do “Rei da Voz” e da sua principal concorrente, as “Lojas Palermo”, encomendava os discos de sua preferência.
Encomenda do Joca é coisa séria! Os vendedores cuidavam de procurar os discos de ópera, sua preferência, e outros gêneros requintados. Joca sempre teve créditos, créditos altos, diga-se de passagem, nas lojas de disco. Jamais deixou de honrar um compromisso. Freguês assim, todo vendedor gosta!
Hoje não sai mais de casa. Tendo tudo o que necessita, só em casos especiais desce a escada que chega ao portão. Aniversários e festas, não perdoa. Comparece a todas, com um belo apetite para os salgadinhos que só não arrebentam com sua pressão porque está sob controle de anti-hipertensivo, e o pequeno aumento na pressão que tinha simplesmente desapareceu com o remédio.
Liga pouco, na verdade não liga nada na maneira de se vestir. Morando sozinho, não tem explicações a dar a terceiros, e não aparece para estranhos, salvo o irmão e a cunhada, sua anja da guarda. Aliás, o Joca tem esta característica. Sem fazer a menor força, nem pagando dinheiro, tem o poder de angariar com facilidade anjos da guarda. Não fossem eles, estaria comprometido, pois seu estado não permite mais fazer as estripulias. Quando mais novo, era um problema sério, mas que nunca praticou uma ofensa a quem quer que fosse.
Joca tem casos famosos. Nunca enxergou direito. No entanto, durante uma época que faltava açúcar no Rio, e ele tinha uma tia moradora em Santa Teresa, não duvidou em prestar auxílio. Era época de chuvas fortes, e o bonde estava em greve. Bonde não faz greve, mas como todos falam assim, quando os trabalhadores param de trabalhar, bonde, banco, correio e até hospital – imaginem o absurdo – fazem greve.
Como chegar a Santa Teresa? Subindo a pé pelas ruas? Seria o normal.
O normal para Joca não existe. Foi a pé mesmo, pela linha do bonde, no alto dos Arcos de Santa Teresa.
Estava literalmente como um burro de carga. No braço esquerdo, uma mala com roupas e um guarda-chuva. Na mão direita, um saco reforçado que continha cinco quilos de açúcar. Mercadoria entregue, a tia ligou para a casa dos seus pais, espantada com o “presente”. Não, não era um favor da irmã, mãe do Joca. A iniciativa foi própria...
Interessante que Joca passava uns dois, três dias com a tia Geta. Mas quem ia trazer de volta o aventureiro era o seu irmão, coisa que o incomodava. Tia Julieta tinha sempre um delicioso café com broa de milho, que o irmão adorava. Depois de conversar um pouco e fumar muito, devido ao excelente gosto do café, trazia o fujão de volta.
Joca é um cidadão do Mundo. Um mistério, igualmente. Com o pai à morte, falava sem cessar, não se sabe a causa certa. Poderia ser para atenuar a ansiedade. Um menos avisado, vendo o fato, falou baixo:
- Insensível. Não tem a noção da realidade.
Não teria mesmo? Ou sua maneira de pensar é superior, entende perfeitamente o que está a sua volta, por uma questão de necessidade de compreender o mundo?
Difícil dizer. O homem é uma incógnita de equação difícil, elegante na sua maneira de resolver. Como podemos avaliar com isenção de ânimos e preconceitos quem sabe a história de tantas óperas, e ri às gargalhadas quando lê “Dom Quixote”, que conhece quase de cor?
Uma coisa é certa. Joca é uma pessoa feliz.
- Sem meu cachorro e minhas músicas eu não fico!
Suas únicas exigências, num mundo tão cretino que vivemos hoje. O amor do cachorro bassê Sharpie e da música que não tem começo, nem fim.
Os seus sanduíches de atum, praticamente diários. Sua permanente meia, que usa sempre. O gosto pelas coisas simples.
Defeitos? Têm todos os que a humanidade carrega nas costas! Muitas vezes chato, chatíssimo, chatérrimo, mas sem rancor. A violência que o mundo prega e vive não faz parte do seu cotidiano. Está ficando velho, o Joca. Velho e sábio.
Como sei disso tudo? Sabendo, ora.