O sobrado de Zezita e do Pilar
Vi, muitas vezes, Zezita, menina, na janela do sobrado, protegida por um belo gradil inglês, com o que comunga o conterrâneo Frutuoso Chaves, também contemporâneo das nossas brincadeiras em Pilar. Algumas casas com primeiro andar eram saliências da aristocracia da época. Mas como o sobrado, em que ela morava, distinguiam-se dois: o dela e o da cerimônia do beija-mãos de Dom Pedro II, que, sob a guarda do IPHAN, é mais preservado. Ambos subsistem até os dias de hoje. Eram também razões, além de o povoado ser rico em plantações de cana de açúcar que, em 14 de setembro de 1758, recebesse o status de vila, data, que a cidade agora comemora, quando, no lançamento do livro de Magdala Cavalcanti, discursei sobre a memória e as coisas que dela se reclamam, sobretudo da conservação patrimonial da cidade antiga. Nesse sentido, Pilar tinha importância: trouxe o Imperador a visitar sua sede, cujo mapa se estendia de terra a dentro, chegando seus limites até as portas do sertão.
Escrevo numa perspectiva de valorizar o passado, em que casas e ruas, enfeitadas por essas diferentes construções, admiravam, com orgulho, tais arquiteturas, que a cidade, naquele tempo, já possuía. Também para considerar o cenário em que a Primeira Dama do Teatro Paraibano e atriz de vários troféus no cinema, Zezita Mattos, nasceu e cresceu até antes da adolescência. E onde vi, com explicação do meu pai Inácio, o “grande escritor” pilarense, José Lins do Rego, reviver o topos dos seus “verdes anos”. Lembro-me bem dele, todo vestido de branco, de paletó sem gravata, caminhando na calçada de Zezita, como se não quisesse pressa para voltar ao Rio ou a Recife, mas apenas chegar, antes do jantar, aos alpendres do Engenho Corredor. Na citada janela, lá estava a artista do futuro, reconhecendo o escritor, voltando à terra, com já um bocado de tempo vivido na arte literária sobre o “ciclo da cana de açúcar”, nas terras do avô.
Como eu, Domício, Frutuoso, Dinaura, Ivan, Iveraldo e Marilene, depois de cursar suas primeiras letras em Pilar, Zezita deixou o sobrado, para continuar o primário no Colégio das Damas, em Campina Grande. Somente em 1958, seu pai Nequinho e sua mãe Maria mudaram-se de Pilar para morar, definitivamente, em João Pessoa, trazendo consigo a família e sua mercearia, que então funcionava no salão abaixo do sobrado. Instalaram-se no final da avenida de Cruz das Armas, bem no começo da ladeira que sobe a Oitizeiro. Visitei-os algumas vezes, nos finais de semana, enquanto interno no Seminário Arquidiocesano da Paraíba, após 1958. Contudo, o nosso imaginário jamais esqueceu a realidade vivida em Pilar...
A vocação artística de Zezita já tinha despertado, desde sua infância, em Pilar, aonde vinham artistas circenses, movimentando a pequena cidade com o coro das crianças, gritando que iria “ter espetáculo”. À boca da noite, encontrávamos com Zezita no Circo, que finalizava a sessão sempre com uma pequena peça teatral. E, no outro dia, já estava Zezita, organizando-nos e repetindo o que aprendera, tal qual na peça Guarani e Iracema. Os adultos nos aplaudiam, ora no depósito de colchões da loja do meu pai, ora no sobrado, com o apoio sonoro do gramofone ou da radiola da sua mãe Maria, fazendo girar discos de 78 rotações, com valsa de Strauss ou tango de Gardel. Com a predestinada Zezita, o admirado sobrado se tornava um teatro infantil. Um valor daqueles tempos presente e que, hoje, vale muito mais como rico valor do passado.
Mas, do sobrado destruiu-se a sua fisionomia, arrancando-lhe olhos, nariz, boca e orelhas, ao substituírem todas suas portas e sobretudo janelas, de madeira de lei, gradis de ferro ingleses, e talvez provisoriamente tapando os vazios com tijolos de alvenaria. Transformou-se o belíssimo e histórico sobrado numa caixa quadrada e fechada. Nem que fosse desfazendo subjetivo desejo de “bom gosto”, o IPHAN e o IPHAEP deveriam, com apoio do proprietário, dos interessados cidadãos daquele nosso Munícipio e do Prefeito, fazer retornar essa reclamada beleza, como projeto de tão importância para Pilar, para a memória e para sua atração turística, reconstituindo-se tal força telúrica, poética e histórica do nosso patrimônio. Quousque tandem, non! Até quando abusar da nossa paciência com essa intolerável tardança?