Um lugar, chamado Rua do Fio
Me desculpem as outras ruas, mas cada uma que conte das suas, e assim faço essa introdução, seguindo o "translado" de meus parceiros. Pra quem nunca viu, ou viveu vou identificando o nosso terreiro, que fica na aquiescência do colo materno dessa Belém, tantas vezes fustigada, mas que a lua faz a mais bela morada.
Embora seja uma rua, que me parece desaguar a beira de um canal a sofregar ajuda ambiental, pouco valorizada pelas autoridades responsáveis, ela foi ou ainda é vital, pra muitas necessidades. Eis um Posto de saude, pra simbolizar o seu significado material. Mas o que haverei de lhes contar, por alto, sem muito detalhe, está no período feudal da história de cada um, que ali, bem ali, entre a passagem Brotinho e a passagem São Pedro, nasceu essa que nem sei a origem, conhecida como a rua do fio, que é um pandemônio de artistas capitais, num gapó, sob as água da baia do Guajará, indignamente rotulado de periferia. Quando, se bem analisada ou melhor estudado, nos idos das décadas de 70 ou 80 poderia ser o centro de uma explosão cultural, talvez vista em outros bairros, mas nunca igual ao desse maravilho, negligenciado Telégrafo, que idílico muitas vezes, em outras epístolas, referendando um passado, que conto aos meus filhos, como nunca vivido por eles.
Vale ressaltar, que nesse período supra citado, onde a ditadura forjava proibições e padrões, onde a lambada e o brega eram marginalizados e proibidos, onde as drogas, a prostituição e a devassidão, pedofilia, bem como a violência era proeminente, contra nós, como correção, contra as nossas mães e pais um desafio, uma monção.
Embora não se tivesse as ferramentas adequadas as situações, para fazer a transformação, tínhamos na rua do Fio um entrave, a divisão. O pessoal da esquerda não se misturava com os do centro e da direita. Porque os da esquerda traziam em seu bojo traços violentos e os do centro e da direita eram mais moderados. No entanto, não se sabe porque, mas o tempo e o vento agem nas pedras e aos poucos, aos invés de ampliar aquela distancia, o que se viu foi a salutar e necessário, como deveria de ser, a festiva aproximação, que acredito tenha sido iniciada pela conversa da linguagem universal do futebol. E a partir dai, aos poucos foi se forjando aquela geração de meninos e meninas, na vanguarda de suas emoções, que se não revolucionou, digo com certeza, que foi um marco, ainda pouco estudado. Tratativa iniciada talvez sem querer, como o tropicalismo ou a jovem guarda, mas significativo pra influenciar as gerações acima e as que vieram depois.
Cada um dos integrantes que fizeram parte, estejam em nossa memória ou presentes nesses dias vindouros carregam consigo a evolução humana, a fatia clássica de tudo o que foi construído naquela época de ouro.
Pessoas que hoje, tenho orgulho de chamar de amigos de infância. Infância, em nosso local, embora visto, por outras classes sociais, dessa mesma cidade com discriminação, como pobres, paupérrimos ou coitados, diria assalariados.
Embora não tivéssemos uma rua asfaltada, casas no padrão dos condomínios fechados, roupas de marca, carros e outras situações. Vivemos a nossa geração com uma criatividade, simplicidade, humildade e com o coração, que nortearam em muitas brincadeiras, e desaguaram no esporte com muita dedicação, forjando a ferro e a fogo esses que hoje são homens a cada individualidade, responsabilidade, erros e uma personalidade padrão, com fortes resquícios daquela junção. Como resposta indireta a sociedade e a muitos que diziam que na periferia só se tirava bandido, prostituta ou ladrão.
Hoje, quando olhamos essa rua do fio, sob os desígnos de nossos legados com saudades daquele tempo, indiretamente contra argumentamos, alguns que se sentiam desconfortáveis ali e aos novos moradores ou filhos, que balbuciam, sem conhecer a história, sem se perceber, que ainda são frutos de uma influência nostálgica muito significativa e falam, que essa rua é muito triste.
Eu diria, que agora, sob um parco abandono esteja em estado de silencio, em memória de muitos que ali viviam e vinham congregar, aprender, contribuir, brincar e sair dali levando algo multiplicado, refastelados. Ali, sem exaltação exacerbada, era como uma serra pelada, que muitos vieram buscar o seu tesouro pra iluminar outros jardins.
Aqueles que um dia fizeram parte daquela grande família, tem em si, como dito antes o seu quinhão, seu legado. Agora mais sossegados, apenas apreciam e lembram com saudades, como é natural, daquele tempo em que a rua do Fio, era palco de peças de teatro, tênis de mesa, campo de futebol, quadra de vôlei, muitas risadas, sessões de filmes na casa de um e de outro, com a mistura de comidas, trazidas de cada casa, pra uma só panela, onde todos comiam a vontade. Formando grandes amizades, embalos românticos de sábados a noite, ciranda de encontros aos domingos na igreja do Perpetuo Socorro, boemia de sons, quadrilha junina, dia das mães, ringue de brigas, prantos, namoros, encarnações, sonhos e tantos, e tantos outras situações inusitadas, que só contadas num belo livro pra ficar na história da biblioteca da cidade.
Essa é uma Belém da saudade, do Telégrafo sem fio, que com dificuldades, filhos expostos ao perigo, cheia de Marias, Florindas, Julias, Otálias, Lúcias, Desuites, Rosas e Raimundas guerreiras, mães e pais de verdade, construíram com o suor, cansaço e muito aterro, produtos indesejados, carbureto, casca de castanha, pedaço de asfalto, esses mais de quarenta anos, que um dia serão mais do que passados.