História
Me disseram uma vez: Minha vida é tão parada que eu não tenho história para contar. Isso me tocou profundamente porque quem me disse isso não conseguia sentir o outro como igual, narcisista, sem empatia, sem compaixão.
Me peguei a pensar que quem não tem história para contar não se identifica com nada ou ninguém, realmente é incapaz de enxergar no outro parte de si mesmo.
Quem nunca lutou para ter um lugar nessa sociedade doente, se sentir inserido, fazer parte de algo, do todo, não é mesmo capaz de entender a luta do outro.
A empatia só pode ser exercida por alguém quando este se percebe naquilo ou naquele, se percebe incompleto, se percebe carente de algo maior.
Quem não tem história para contar não saberia sequer identificar uma, pois não tem parâmetro para comparar.
Quem me disse isso é a mesma pessoa que diz que nos acostumamos a tudo, que precisamos nos adaptar ao meio para viver.
Essa é a mesma pessoa que:
Ao ouvir sobre a história de um menino que não aguentou a dor de não ser aceito pelos pais da forma que é tirou sua própria vida e disse: Ele poderia ter feito o que os pais queriam e quando tivesse dinheiro suficiente para viver sozinho, seguir seu caminho, se matou porque quis.
Ao ouvir o outro falar sobre as dores de sua vida o interrompe para afirmar que suas dores sempre foram piores e sobreviveu, e que a fragilidade emocional do outro é falta de força de vontade.
Ao ver alguém em estado de necessidade diz que ela na verdade não quer trabalhar porque emprego tem em qualquer lugar.
Ao saber da noticia de um estupro a primeira pergunta que faz é: Mas a pessoa estava fazendo o que na rua de noite? Ou também, com a roupa que costuma vestir é de se justificar mesmo!
Ao ouvir sobre um espancamento ou assassinato em algum evento ou festa também diz: Se tivesse trabalhando isso não teria acontecido! Ou, foi bom para aprender a não ficar vadiando na rua.
Afirma que não tem problemas com homossexualidade, mas a primeira coisa que diz quando fica sabendo que um casal gay vai estar no mesmo ambiente é: Olha, só peço que não fiquem muito perto, de carinho ou beijo, porque tem crianças vendo e elas podem ser influenciadas.
Diz que criança não sabe o que é respeito, só entende o medo e que é com esse medo que se deve educar um filho.
Se porta como exemplo de virtude e sabedoria, mas não aceita a versão do outro, sua verdade é única no mundo e quem não a segue não merece seu respeito.
A pessoa aqui descrita não está só, nesse mundo doente o que mais vemos são pessoas que pensam e agem da mesma forma e todas com a mesma base moral que diz que a história do outro, sua luta, sua revolta, é vitimismo, é mimimi.
Percebi que quem não tem história para contar está tão preso em sua própria história que não consegue enxergar além do próprio umbigo.
Não consegue perceber que o mundo hoje só é o que é em razão das muitas histórias de superação, de revolta sobre o sistema instituído, de luta por igualdade e aceitação, de mortes e torturas, de privações de liberdade e de expressão, histórias essas que ao serem contadas despertam nos que nelas se identificam a vontade de ir ainda mais longe, de se perceber como alguém no mundo.
Não percebe que não tem história para contar porque outros fizeram história antes deles, que o chão que pisam está coberto de sangue e suor daqueles a quem hoje eles ridicularizam.
Que ao afirmar não terem história para contar tentam sufocar a voz de quem não só tem muita história para contar, seja sua ou de quem fez e faz história todos os dias, como que, com seus atos, pode mudar a história de outros.
Nosso presente é feito da história que veio antes de nós e nosso futuro será feito da história que será construída hoje, então a essas pessoas que não têm história para contar eu sinto dizer que ao morrer simplesmente deixarão de existir, pois ninguém será capaz de contar as suas histórias, na bem da verdade serão esquecidos na mesma velocidade em que se esqueceram de todas as histórias que tornaram sua vida possível de ser vivida.