Sociedade x Sanidade

Antes de iniciarmos nossa digressão é preciso entender o conceito de sociedade como e porque os indivíduos decidiram conviver nela. Um pouco de História e Política é necessário para melhor entendermos o porquê de sermos o que somos e termos chegado onde chegamos.

Na Idade Média, o indivíduo foi visto somente como parte do coletivo, não destacável do todo social.

Na teoria de Santo Agostinho, o ser humano é social por natureza ou essência, e individual por corrupção originária (De civitate Dei XII 28). A sua salvação como indivíduo é inseparável do destino dos seus semelhantes.

Segundo Sartre, mesmo dentro do maior constrangimento - político, econômico, educacional ou outro -, existe um espaço, maior ou menor, para o exercício da liberdade individual, o que faz com que as pessoas possam se distinguir uma das outras, através das suas escolhas, mantendo assim o equilíbrio entre um e outro.

Trazendo um pouco da Política para nossa digressão a fim de confirmar ainda mais a teoria que será colocada temos os seguintes conceitos:

Thomas Hobbes no livro Leviatã (1651), traz exatamente o conceito de que o ser humano, como indivíduo é em sua natureza egoísta, ele pondera que antes da constituição da sociedade e do Estado, na sociedade - que ele dá o nome de Leviatã – os indivíduos eram completamente livres para fazerem o que quisessem, sendo os juízes dos seus próprios atos, surgindo assim, quase que de forma inevitável, a competição entre esses.

Nesse sentido surge um clima de guerra de todos contra todos. Devido a essa competição e o desprezo que os homens tinham uns pelos outros no estado natural, que Hobbes usa a famosa citação de “o homem é lobo do homem”.

Diante dessa situação surgiu a necessidade de algo que assegure que os acordos feitos - no caso de Hobbes “contratos” -, assim como os direitos, fossem garantidos.

Hobbes tem a concepção de que toda a sociedade se baseia em contratos de todas as espécies, pois para estabelecer uma troca se faz necessário ter um “contrato” - nesse caso não se traduz apenas contratos comerciais, mas de toda ordem política e social -, assim como outras diversas situações é necessária uma transferência de direitos.

Justamente pela natureza egoísta dos indivíduos e pela sua incapacidade de confiar no outro, houve a necessidade de surgimento de um agente externo para se estabelecer o pacto e garantias, isto é, o Estado.

Para isso foi necessário que cada um abrisse mão de parte da sua total liberdade para poder haver algum poder que garanta a sua própria vida, seus direitos e o cumprimento dos “contratos”, transferindo a este ente o direito de poder garantir, por meio da força, o cumprimento de acordos sociais firmados e assim pôr fim no clima de guerra.

Confirmando ainda mais a teoria que aqui será exposta, John Locke em o Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1682) afirmou que o estado de natureza não foi um período histórico, antecessor à constituição da sociedade e do Estado como ente político, mas é uma situação que pode existir independentemente do tempo, sendo condição humana.

Para Locke, os indivíduos de uma comunidade política consentem a uma administração com a função de centralizar o poder público. Uma vez que esse consentimento for dado, cabe ao governante retribuir essa delegação de poderes agindo de forma a garantir os direitos individuais, assegurar segurança jurídica, assegurar o direito à propriedade privada, etc.

Jean-Jacques Rousseau em O Contrato Social (1762), questionou porque o homem vive em sociedade e porque se priva de sua liberdade. Coloca que o contrato social, os bens, são protegidos e a pessoa, unindo-se às outras, obedece a si mesma, conservando a liberdade. Rousseau disse que a liberdade é inerente à lei livremente aceita. "Seguir o impulso de alguém é escravidão, mas obedecer uma lei autoimposta é liberdade".

Bem, o "Contrato social", ao considerar que todos os homens nascem livres e iguais, encara o Estado político como objeto de um contrato no qual os indivíduos não renunciam a seus direitos naturais, mas ao contrário, entram em acordo para a proteção desses direitos, onde o Estado político é criado para preservá-los. Assim nós, como indivíduos sociais, outorgamos a outro o controle de nossas próprias vidas, o que fez com que nos transformássemos em mais um entre muitos.

Foram instituídas as formas como devemos nos comportar, vestir, falar, amar, ser, criou-se um padrão social, esse padrão enraizou-se de tal maneira que a sensação de pertencimento só é sentida quando todos se comportam do mesmo modo, falam das mesmas coisas, se vestem mais ou menos do mesmo jeito, possuem as mesmas ambições, compartilham dos mesmos sonhos, etc, não há espaço para as particularidades.

Nós, seres sociais, como forma de controle, fomos aprisionados aos padrões instituídos por nós mesmos, encaixando-nos em normas predeterminadas, vivemos como em uma grande linha de produção, a engrenagem perfeita, sem qualquer peculiaridade que possa definir um indivíduo de outro e, por conseguinte, torná-lo especial em relação aos demais.

Assim, acabamos enjaulados em vidas superficiais e nos tornamos seres superficiais, totalmente desinteressantes, inclusive, para nós mesmos. Sempre conversamos sobre as mesmas coisas, ouvindo respostas programadas pelo padrão, o qual nos torna seres adequados à vida em sociedade.

Se levarmos em consideração a natureza humana egoísta e individualista, como bem exposto por Hobbes, Locke e Rousseau e, se nos relacionamos socialmente por necessidade de sobrevivência e preservação de direitos – relacionamento no sentido amplo da palavra -, outorgando poderes à terceiros escolhidos por nós como sociedade, para que definam como devemos agir, essa outorga de controle social vai de confronto direto com a essência do indivíduo e esse confronto torna as relações sociais um eterno ringue.

Como conceitualizado pelos filósofos e políticos no início dessa digressão, é necessário abrir mão de sua natureza em prol do todo, assim sobrevive-se à vida, mas perde-se sua essência, uma vez que o relacionamento com o outro faz com que a personalidade do indivíduo seja pluralizada, no papel social esse indivíduo não é um, mas muitos, em função das circunstâncias que o cercam.

Muitos se questionam para que serve uma adequação que transforma todos em um exército de pessoas completamente iguais e chatas, que procuram sucesso econômico, enquanto suas vidas mergulham em depressões?

Qual seria o sentido de adequar-se a uma sociedade que mata sonhos, porque eles simplesmente não se encaixam no padrão?

Uma sociedade que prefere teatralizar a felicidade a permitir que cada um encontre as suas próprias felicidades.

Uma sociedade que possui a obrigação de sorrir o tempo inteiro, porque não se pode jamais demonstrar fraqueza.

Uma sociedade que retira a inteligência das perguntas, para que nos contentemos com respostas rasas.

Várias teorias de grandes pensadores e influenciadores tentam equilibrar a balança social, colocando que o indivíduo pode sim fazer parte de um todo e mesmo assim manter sua singularidade, seguir as normas e conceitos sociais e mesmo assim ser único e individual, mas se o exercício da liberdade individual implica escolhas - que inclui análises ideológicas, visões de mundo e experiências de classe, e essas escolhas interferirão em todo o meio social que vive - então como manter sua individualidade?

A todo momento a natureza humana é impactada com normas, regras, conceitos preestabelecidos, direitos adquiridos. Quem aguenta isso?

Os nossos cobertores já estão ensopados com os nossos choros durante a madrugada. O choro silencioso para que ninguém saiba o quanto estamos sofrendo para manter a farsa de que estamos felizes. Para fazer com que mentiras soem como verdade, enquanto, na verdade, não temos sequer vontade de levantar das nossas camas.

Poderia dizer que nem Sigmund Freud explica, mas até mesmo ele já nos dizia que: “O objetivo de fazer o ser humano feliz não estava nos planos da criação do mundo” e “Quanto mais perfeito parecer por fora, mais demônios tem por dentro.”

Os ativistas modernos afirmam que preferimos vidas de silencioso desespero a romper com as amarras que nos aprisionam e nos distanciam daquilo que grita dentro de nós, esperando aflitivamente que o escutemos, a fim de que sejamos nós mesmos pelo menos uma vez na vida sem a preocupação de agradar aos outros. Como se isso fosse ao menos possível, na verdade não se trata de agradar, mas de sobreviver nessa sociedade doente que construímos.

Como romper com todo o sistema sem afetar diretamente quem se importa e quem importa? E ainda como continuar vivendo em sociedade sem fazer parte dela e ser impactado por ela?

Temos medo de assumir as rédeas de nossas próprias vidas, porque nossas vidas, bem na verdade, não nos pertence.

Como já foi falado e repisado em outras digressões, somos seres sociáveis e por isso não dá para nos desligarmos, rompermos o cordão umbilical que nos liga à sociedade em que vivemos.

Se relacionar socialmente traz um fardo enorme ao ser individual, desde tenra idade o indivíduo necessariamente é subjugado, determinado a ser um agente político, bem visto, aceito no meio social que convive, seguindo as regras e acordos sociais previamente instituídos - “contratos” - e mesmo diante de tudo isso, manter suas crenças individuais, equilibrando-se entre o que se é naturalmente, o que se aprendeu a ser e o que os outros esperam que seja, vivendo eternamente em uma corda bamba, em que um único descuido desmorona tudo a sua volta.

Cada atitude tomada, palavra proferida, gera consequências em sua vida e na vida de todos com quem convive, como uma onda reverberando pelo espaço, transformando tudo que toca.

Dito isso, algo me inquieta a mente, imaginar como conseguimos viver em sociedade e ao mesmo tempo manter nossa sanidade.

Romper com o que está instituído e retomar as rédeas de uma vida já perdida antes mesmo de ser recebida significa assumir seu estado natural, seu egoísmo e individualidade, não se preocupar com as consequências de seus atos, na sua ou na vida de outros.

É preciso coragem e uma boa dose de loucura para retomá-las e viver segundo aquilo que arde dentro de nós, é preciso ser inadequado, inconveniente, transgressor.

Até que ponto conseguiríamos seguir dessa forma?

Até que ponto sobreviveríamos sem observarmos o contrato social firmado?

Ou perdemos a sanidade vivendo em sociedade, ou perdemos a sanidade tentando romper com ela.