Todos os dias acordo e olho no espelho. É uma espécie de "ritual para tratamento de choque moderno" (cada um usa a melhor estratégia, uns olham as contas pra pagar) pra provar pra minha mente que apesar do sono me dominar e o desejo de ficar na cama ser um parasita, não nasci Angelina Jolie e nem Jennifer Lopes (Deus tem suas preferidas). Funciona. Alguns minutos depois, o "skincare" dá lugar a uma nova mulher: protegida dos raios UVA e UVB, mas não dos animais racionais libertos do cativeiro e expostos diariamente às redes sociais.

Pra dar um toque especial ao enredo, o interfone toca. Às 7 horas e 12 minutos que piscam intermitentes no pulso esquerdo não me parecem uma boa hora pra visitas. Além do mais, as pessoas costumam avisar quando nos visitam, uma espécie de "prepare-se", evitando situações inconvenientes. Esperei um pouco pra er certeza de que realemnte tinha ouvido o barulho. Vai que era um sonho que não acordou? Ou uma lembrança bem profunda de que a vida começou com um toque do despertador? Mas tocou de novo. E eram 7 oras e 14 minutos. Enfim, atender é a solução.

- Pois, não?

- Moça, bom dia. Trago potes de felicidade. Nõ quer experimentá-los? Tenho dois sabores...

E de repente o som da voz que vinha do aparelho deu lugar a uma memória que parecia presente fino embrulhada em papel de seda.

 

Felicidade era sentir o cheiro das flores que a catequista da escola nos entregava  como semente todo início de semestre. No últmo dia de aula, éramos convidados a presentear um de nossos colegas com aquele arranjo que foi cultivado a cada mês. Era tão sutil a forma como ela falava de amor que para muitos, a atitude repetida ano a ano, era um peso sem tamanho. Quantos nunca entregaram uma flor porque sequer tiveram o cuidado de plantá-la ou até mesmo respeitar o seu espaço, a sua força. Felicidade incontida via -se no rosto de Carina, a moça das flores, que ao ver em nossas mãos aquela sementinha que virou flor irradiava uma luz especial, parecia que as suas "íris" tinha reflexos de relâmpagos pelo excesso de luz que captavam.

 

Felicidade era o nome da cachorra de Seu Onofre que quando de sua enfermidade deitava-se do lado de fora do hospital, aguardando-o terminar o tratamento. Parecia que ela tinha um brilho, uma cachorra que precia sorrir ao receber um carinho.

Felicidade era encontrar os ovos de Páscoa, criteriosamente moldados pela minha tia. Suas mãos pareciam de fadas e delas partiam faíscas de luz.

 

Felicidade era correr no campo atrás da bola, da lata, da sacola, da semente de fruta. Tudo tão simples que parecia irreal lembrar de tudo aquilo num momento tão inoportuno.

 

- Moça, moça. Você não quer comprar um pote de felicidade? Está me ouvindo? Tem de maracujá e morango. O precinho é simbólico, o interesse é devolver às pessoas a alegria de sentir o sabor de uma receita que é uma "delícia de família".

 

Parecia ter sido abduzida por um espírito emotivo (por um segundo) e sobre mim pairava uma nuvem de sentimentos incoerentes. A última noite tinha sido pesada. A ONG em favor da vida das Muriçocas fez uma manifestação pacífica durante a madrugada em todos os corredores da casa. As Muriçocas, com suas bolsas cheias de sangue humano, levantavam bandeiras em favor da vida. Tentei desvincilhar daquele caos que se instalou: comprei uma raquete nova com carregador automático e luz azul para atrair as presas. Mas como morrer queimada não deve ser um bom negócio, logo, preferi usar repelentes e dormi no sofá. Apesar de acreditar que deveríamos extinguir o calor como manifestção de uma estação, até porque, os pernilongos tem uma facilidade maior de se reproduzirem nesse período, já que os ovos rompem com mais facilidade, ou seja, o controle de natalidade seria o ideal, mas, infelizmente, os "aedes" e os "culex" escolheram representantes que preferem fechar os olhos para a realidade.

 

Por outro lado, a voz do rapaz me trouxe de volta:

 

- Desculpe, moço. Pode repetir, por gentileza:

 

- Estou vendendo potinhos de felicidade de maracujá e morango. Não gostaria de experimentá-los. É uma receita de família. 

- Obrigada, viu! Até preciso mesmo de uma dosagem extra de felicidade, mas prefiso sem açúcar. Afinal o vilão do século é ele, não e?

- Tudo bem, moça. Tenha um bom dia. Em breve a felicidade bate de novo à sua porta...

- Moço? Moço?

 

Corri pra janela e lá estava ele, com sua kombi decorada. As janelas eram uma espécie de montanha, nas quais, ele e a familia se amparavam, como se fosse uma mesa pra colocar os cotovelos, e na traseira a frase: "A felicidade sempre bate à sua porta... Mas ela jamais vai arrombá-la..."

 

Quis descer pra comprar o pote, mais porque o sentimento de arrependimento me tomou: eles estavam tão felizes para as sete da manhâ...

 

E enquanto arrumava o cabelo, vendo aquela felicidade toda na kombi, fiquei procurando justificativas para o contrasenso daquela cena: a maldade humana.

 

Ontem dormi, com a sensação de que os desbravadores de sofás, os famosos fakes, foram revelados de forma escandalosa pela "terra de ninguém", que a internet criou. De onde partem as ofensas públicas pelo simples ódio? Como alguém pode julgar uma mãe que pede ajuda para tratar de um filho em situação calamitosa de saúde como paciente oncológico, a condenando por  não chorar nas redes e permanecer forte? O moço do potinho de felicidade podia distribuí-lo nas redes, quem sabe assim, as pessoas se tornem menos amargas. Não adianta plantar o ódio e fazer campanhas do setembro amarelo...

 

Prefiro muriçocas...

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 19/09/2023
Reeditado em 19/09/2023
Código do texto: T7889574
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