Eu, o deputado e aquela carta.
Há trinta anos o Deputado Federal Paulo Lopes é o deputado mais votado em minha cidade, Inhapim, Minas, cuja população na sede do município gira aí em torno dos 11 mil habitantes. Tal deputado é partidário do governo, esteja em qual partido estiver, e independente de qual político estiver governando. Muda governo, ele muda junto. Ele é situação, e pronto!
Pois bem, ali no início de suas primeiras campanhas eleitorais para deputado federal naquele meado dos anos 90, o Deputado Mauro Lopes tinha um marketing interessantíssimo de como fazer política, de como angariar votos. Ele tinha como prática de propaganda eleitoral distribuir carta de apresentação personalizada a seus eleitores. Ele já havia presidido um importante órgão nacional relacionado a rodovias federais e estaduais.
O interessado repassava seu nome completo na cidade para algum assessor ou correligionário político do deputado, e quase que instantaneamente recebia em troca, e pessoal ao devotado, uma carta de apresentação daquele deputado. Nela dizia que o portador daquela missiva era amigo pessoal daquele político, entre outras “conversas mais pra boi dormir”.
Como ele era o deputado majoritário em Inhapim, havia um derrame daquele tipo de documento naquele lugar com vistas à captação de votos. Todo mundo da cidade tinha uma carta daquela. Dava “status” levar uma carta daquela no bolso, na bolsa, ou tê-la estampada numa moldura de sua sala, ou mesmo, por precaução, tê-la guardada na gaveta da mesa do seu quarto ou da sua cozinha, de uma maneira que fosse fácil sacá-la para poder comprovar para algum incrédulo qualquer que o deputado dizia ser amigo pessoal daquele sujeito. O povo da cidade exibia garbo e orgulhosamente aquela carta para o mundo todo ver. Mas na realidade, poder-se-ia dizer na época, o melhor lugar dela ser guardada seria dentro do cofre do veículo daquela pessoa para que ela em momentos de emergência socorresse aquele motorista naqueles momentos mais difíceis em que fosse parado numa blitz qualquer.
Meu vizinho de porta, aquele que tinha uma oficina de conserto de bicicletas, não economizava em seus pedidos de mais e mais daquelas cartas, não somente para ele, como também para sua mulher, pai, mãe, avó, sogra, e assim seguia toda aquela rotina. Todos seus filhos possuíam uma carta pessoal daquele deputado.
Essa desse meu vizinho era plastificada, emoldurada, e ficava dependura em sua sala entre aquele seu diploma do Curso de Mecânico de Automóveis em que ele se formou por correspondência pelo Instituto Universal Brasileiro, e daquele seu diploma do Curso de Madureza, ambos concluídos em 1962.
Ele era pai de um amigo meu, e gostava de sair por aí exibindo aquela carta dizendo que o deputado era amigo pessoal seu. Soava-lhe intimidade. Dava-lhe ares de gente importante. Se alguém duvidasse da consideração daquele deputado, ele arrancava aquela outra sua carta que tinha sido cuidadosamente dobrada e colocada em sua carteira, e como ele bem dizia, "esfregava na cara" daquele descrente, para depois de nariz em pé, sair provocando aquela pessoa da discussão, repetindo pra todo mundo ouvir : - Num falei, num falei... olha a carta aqui que prova que sou amigo do "homem".
Embaixo daquela carta, subscrevendo-a, tinha o carimbo e a portentosa assinatura daquele nobre deputado, e via-se claramente que aquela assinatura era timbrada, pois eram muitas cartas de apresentações distribuídas, e aquele deputado não iria ficar perdendo tempo assinando carta por carta.
Tal documento, além daquele tipo de assinatura estar distante de poder ser considerada uma assinatura original, era de uma péssima impressão, e que não passava de uma mal disfarçada cópia xerox de uma xerox, de uma xerox, de uma xerox...
Elas eram direcionadas tanto aos Policiais Rodoviários Federais, como aos Estaduais, e apresentava o dono daquela carta como “um cidadão do bem, família, cristão, e amigo daquele deputado”.
Minha cidade, Inhapim, é fiel eleitora daquele congressista, e se situa às margens da BR-116. Ela fica encravada bem ali em seu quilômetro 500. Inhapim distancia cerca de 285 km da capital do estado.
Mandei plastificar também a minha carta. Guardava-a cuidadosamente dentro do porta luvas daquela minha reluzente Brasília Preta de pneus tala larga, motor 1600cc, dupla carburação, e que tinha um veemente e maravilhoso "ronco" kadron em seu cano de descarga. Aquele "sapão," que era o seu apelido, tinha um potente toca fitas "Roadstar" para que eu pudesse ficar ouvindo às alturas, as músicas do Timóteo. Quando a estacionava, levava, para onde quer que fosse, aquele toca fitas comigo, para que não fosse roubado.
Não nego, com aquela carta em mãos sentia-me ali mais protegido do que o Príncipe Charles quando no calor daquelas suas infidelidades conjugais contra a Princesa Diana, e como proteção àquele mar de acusações que sofria, disse para sua ainda então amante Camila Parker, que naqueles momentos, "preferia estar se protegendo ali bem detrás de seu Tampax". Que coisa! Príncipe tem cada excentricidade. Com tanto lugar para melhor de se esconder, e um bem ali naquela região, porque escolher logo depois daquele absorvente feminino?
Em um daqueles finais semana voltava eu “bronzeadaço” de divertidas férias no litoral capixaba, mais precisamente da cidade de Guarapari. Aliás, cidade essa que no verão parecia mais uma grande Inhapim com praia de tanto que tinha gente da minha terra ali. Já próximo à cidade de Manhuaçu, no início da noite, atendi aquele típico e característico sinal de um Policial Rodoviário Federal com sua lanterna dando ordens para que eu me encostasse.
Estacionei natural e bem cuidadosamente aquela minha Brasília Preta em um canto daquela BR com todo o cuidado do mundo para não arranhar aquelas suas calotas em alguma pedra daquela rodovia. Aguardei a chegada daquele policial mais pra perto daquela minha possante, abaixei o volume do som daquele meu veículo, e quando ele já se encontrava bem próximo, entreguei-lhe, até antes dele me pedir, minha carteira de motorista, o documento do veículo e a minha identidade. A Carteira de Habilitação não tinha fotos na época, só tinha validade se acompanhada da carteira de identidade.
Aquele policial mais parecia ser um gringo. Era gordo, moroso, pachorrento, nada paciente, e seus olhos mais pareciam um par de duas grandes bolas de gudes azuis que pareciam estar sendo empurradas para fora daquela sua cavidade. Antes mesmo de examinar meus documentos, depois de iluminá-los com a sua lanterna e ter dado um giro completo em volta do meu carro, disse-me que três dos quatro pneus do meu carro estavam carecas. Dei de ombro para aquilo que que ele havia dito. Ele então, depois de analisar o documento do meu veículo, disse-me que eles estavam vencidos, e que o IPVA estava com três anos de atraso. Sobre minha CNH, disse-me que ela estava vencida há quase quatro anos. E ainda me questionou, de acordo com a minha CHN, o porquê de eu não estar dirigindo com óculos de grau.
Continuei não dando a mínima importância para os comentários daquele policial, e me mantive olhando para trás conversando com aquela morena cor de jambo esposa daquele meu caroneiro, já que ela se encontrava naquele banco traseiro, e usava uma minúscula saia jeans sobre aquelas suas belas, roliças e bronzeadas pernas. Inclusive por alguns momentos, eu me chateava de não ter sido ela que tivesse vindo no banco da frente do carro, em vez daquele "baitola".
Ali eu tinha esperança que em algum momento eu pudesse ver até um pouco mais além do que ela já mostrava. Estava muito próximo disso. Aliás, confesso, aquilo que eu tentava enxergar olhando para trás naquele momento, era o que eu tentava ver desde que eu havia saído de Guarapari olhando por aquele retrovisor interno daquela minha "Brasílhaça".
Eu estava dando carona para aquele casal que eram meus conterrâneos, e que estavam também retornando daquele balneário, mas na condição de que eles me ajudassem na gasolina. Nisso aquele policial que me questionou sobre tais irregularidades bateu em meu ombro, e pediu-me que o acompanhasse, mas imediatamente após ele me dar aquela ordem, saquei do porta luvas daquele meu veículo aquela imponente carta. Entreguei-a nas mãos daquele policial de uma maneira um tanto quanto irônica e debochada aquele meu poderoso documento plastificado: era a minha carta de apresentação daquele deputado.
Nesse momento, sem o temer, fixei-lhe aqueles meus olhos de lince à espera de seu pedido de desculpas, que eu sabia, não tardaria. Pensei comigo: - Ele não sabe com quem estavam falando! Naquele momento eu já até havia decidido que eu não lhe teria nenhuma misericórdia.
Ele então baixou seus olhos sobre aquele documento, e sem mesmo terminar de ler a sua primeira linha, virou-se para trás, chamou provavelmente por aquele outro policial que deveria ser seu superior, e entregou-lhe tal carta. Estava eu ali ciente de que aquela minha carta de apresentação já estava funcionando como o mais convincente dos Habeas Corpus. Ali eu até já avaliava a possibilidade de eu ter que desculpar ou não aqueles policiais por tamanhas ousadias.
Depois de ler e reler por diversas vezes aquele documento e analisá-lo devidamente, esse outro policial que me fazia lembrar o General Chales de Gaulle, isso por causa daquele seu nariz exageradamente grande e grosso, abaixou sua cabeça em minha direção com os óculos na ponta daquele seu narigão, e comigo ainda assentado na direção daquele meu veículo, e com grande eloquência, balançava seu dedo polegar em riste na direção daquela carta. Leu-a em voz alta com bastante entonação, acompanhando piamente toda a pontuação daquela carta que era iluminada por aquela sua lanterna em sua mão, e não satisfeito, repetiu tudo aquilo novamente em voz alta de uma maneira que eu continuasse ouvindo tudo aquilo, e no fim deu uma grande ênfase ao nome daquele deputado que ali se encontrava repetindo-o por diversas vezes: "Atenciosamente, Deputado Paulo Lopes".
Ele então virou aquela carta do lado avesso, desvirou-a, enrolou aquele documento em forma de canudo dando três leves pancadinhas com ele em meu braço que se encontrava apoiado no descanso de braço da porta da minha Brasília. Olhou em volta, virou-se para o lado daquele seu subordinado encarando-o de frente sem nada lhe falar, mirou um ponto qualquer naquela escuridão acendendo calmamente um cigarro, e resmungou algo um tanto quanto inaudível. Balançou levemente sua cabeça para um lado e para o outro, como que negativamente, e voltou a fixar seu olhos novamente naquela missiva. Enrolou a ponta daquele seu ralo e branco bigode com a ponta de dois de seus dedos, e assim, demonstrando o cuidado e a delicadeza de um "rinoceronte afligido numa sala de cristal" , levou aquela carta em minha direção, e antes mesmo que eu a pegasse de volta, já que ali eu tinha certeza que viria dele um pedido de perdão, de clemência, ele olhou profundamente em meus olhos, e na maior de sua naturalidade, disse-me:
- Enfia essa sua carta no rabo!!!
E continuou:
- Venha assinar suas multas. Seu veículo está detido. E para de falar merda, caso contrário te meto do “xilindró” agora, acusado de suborno.
Cinco dias depois compareci ao pátio de veículos apreendidos daquela delegacia em Manhuaçu com um motorista devidamente habilitado, comprovante de pagamento de todos os documentos atrasados do veículo, e um borracheiro que trouxe consigo três pneus novos daquele carro para substituir por aqueles carecas.
Desde então eu nunca mais aceitei de deputado nenhum qualquer tipo de carta de apresentação. E em hipótese alguma.
Dinheiro para aqueles custos tão altos que me apareceram assim tão de repente, eu peguei emprestado no Bradesco com juros de 21,5% ao mês, e que foi pago em 12 “suaves prestações” de quase a metade do meu salário.
Também recordo que minha vinda naquele fatídico dia lá da cidade de Manhuaçu até Inhapim, tive como companhia aquele mesmo casal que estava de carona comigo, e aquela viagem foi feita de carona na carroceria de um caminhão de leite. E de madrugada. E num frio do cão.
Chegando em Inhapim tive que devolver aquele dinheiro da carona para aquele casal, pois alegaram que eu não cumpri o acordo de deixa-los em casa naquela carona "paga".
E nunca mais votei no Deputado Paulo Lopes