O ser nada é sem ser o que deseja ser.

A temperatura rapidamente caiu. A garoa umedece a alma dos objetos, a alma ingrata das pessoas em suas passadas desconexas. Como disse ao cruzar com ela no elevador, em resposta ao que ela lhe dissera ao entrar:

- Credo! Que frio!

- É o frio mostrando a cara finalmente, não é?

Ela não disse nem sim e nem não, chegando ao andar de destino, saiu para a direita, dizendo um bom dia rápido, enquanto ele saiu para a esquerda, respondendo ao bom dia rápido dela. Encostou o crachá no relógio que emitiu o som característico de sua presença, deu uma rápida olhada no ambiente vazio, mas cheio de papeis para uma fogueira para esquentar os ossos da cidade. Sorriu ao imaginar um tremendo incêndio devorando as imundícies dos olhos e bocas que olham tudo, dizem tudo e nada fazem. Olhos e bocas que com seus movimentos extrapolam ações concretizando imbecilidades que registrados, será difícil apagar.

O difícil não é ser, o difícil é fazer para ser.

E para fazer é tão simples! É só sorrir sem vontade

É só olhar com os olhos do coração mesmo que seja de pedra

É falar quando a fala sempre morre no fundo da garganta

É estar bem com tudo e com todos sem querer saber

Mesmo que o tudo seja um insignificante nada

Mesmo que todos não estejam nem aí se existe isso ou aquilo

E dias seguidos expressar o bom dia em bom tom

É cumprimentar com o sorriso mecânico numa alegria mecânica

É torcer por qualquer time e discutir o campeonato da futilidade

É gostar de números enriquecendo o bolso alheio

É se saciar variando o prato de sabores mendigado pelas sarjetas da fome

É nadar contra a correnteza dos absurdos que assolam o país da mentira que se diz sério

Enfim, é tudo e muito mais, é tudo e é mais embaixo o furo do prazer e do gozo ilusório

Enfim... Escreveu ponto um ponto final.

Salvou. Fechou o Word. Desligou o micro. Levantou da cadeira.

E sem que percebessem, pulou a janela. Ninguém gritou ninguém se alarmou. Continuaram a trabalhar como se nada tivesse acontecido. Ele apenas se esqueceu de que estavam no andar térreo, apenas esfolou o joelho nada mais. Desiludido, voltou para o seu lugar na cadeia de sobrevivência, ligou o micro, acessou o Word, abriu o Excel, puxou a planilha e continuou com a conciliação interrompida.

Pastorelli
Enviado por Pastorelli em 16/09/2023
Código do texto: T7886803
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