Eu não sou mulher.
Eu não sou mulher. Alguma vez fui mulher? Alguma vez fui mais mulher? E o que é ser mulher? Eu nem mesmo sei. Só sei que sou menos do que isso.
Ser mulher é desejar ser desejo, é ser deusa desonrada. Tenho todas as máculas vermelhas vis do feminino, todas as féculas de
raiva e desamor do ir e vir, mas não tenho história a contar. Sou mulher não praticante, mulher desalmada. Flor murcha ainda sem desabrochar. Seria culpa inerente da flor ou do deserto árido onde foi plantada?
Não há história e nem haverá.
Como o buquê que se sustenta sem deixar notar sua natureza irreversível: a vivacidade que carrega é prelúdio de uma sentença de morte irrevogável. Espera, pois já caem as primeiras pétalas e a areia do tempo pesa.
Aos vinte e poucos anos ela já sente o peso do inexorável. Um meio, um quarto ou um terço de vida, que diferença faz? Se todos os anos serão os mesmos, se todas as noites serão as mesmas, se todos os números são partículas de uma finidade breve. Se poucos segundos de amor pudessem atropelar todos esses anos de angústia a vida se tornaria um pouco mais eterna que a morte. Se houvesse história a ser escrita, eu viveria um pouco mais que meus vinte ou oitenta anos. Se o amor e a história atravessam o tempo, que dirá de mim que não tenho ambos? Sou um breve instante no vácuo. Nem vida, nem morte: sou o nada.
Silêncio! O nada quer falar! Logo o clima pesa e se percebe o ridículo de tentar interpretar um papel que não lhe foi dado. Podia calar enquanto é tempo, mas a boca abre antes de se ter o que falar. A ânsia de viver o não-personagem surge da esperança de construí-lo com fragmentos e pedaços ao ar. E eu tomo forma, seja a forma do monstro de Frankenstein, seja a mentira, seja a mulher, a morte ou o nada, mas eu preciso gritar o vazio! Silêncio.
O eu-lírico manifesta-se no fundo da minha mente com uma voz que nunca será revelada. Não tem rosto nem máscara. Nunca existiu, mas ainda está lá. E pulsa. E quer gritar. Traja-se de um corpo que é só corpo e diz ser mulher enquanto vê uma imagem familiar no espelho. É só uma imagem. Ele não está lá. Um deus sentenciado à morte só tem os próprios olhos para além das correntes e a própria boca para dizer suas últimas palavras.
Esta é a história que nunca foi escrita sobre um amor que nunca existirá. Sobre a flor que murchou antes de desabrochar. Sobre o bebê que morreu antes de nascer. Sobre a mulher que deixou de existir antes de sequer viver.