Fronteira
- Deu pra ouvir direitinho fazendo um "creck"
- Bota gelo quando chegar
- Vai doer é na viagem.
Viagem. Escuto uma conversa sobre pé quebrado. A chuva assusta um pouco o chão. Quando passam, os faróis acessos dos carros brilham os paralelepípedos, como se alguém tivesse deixado cair centenas de pedrinhas preciosas no chão. Diamantes.
Estou há dois dias já quase como um zumbi. Amando como um bicho, sendo o araçá azul. Inacabado. O Diadorim e a neblina. As imagens e as palavras se formam em sonho, na fronteira da percepção. Uma moto avança pela minha direita, mas para súbita assim que me vê. Não fosse isso, eu teria ido sem nem dar por mim. Quebrado o pé.
A chuva cai mais um pouco. Ou será que ela já caiu, eu é que cheguei antes? Encontro uma amiga, ela tá com a garganta ruim, me fala com uma voz meio sussurrada, quebrada.
- Tô com a voz rouca.
- Voz rouca ainda? - Eu repito o que ela acabou de dizer.
Tenho essa mania. Como que pra uma coisa ser viva e existente, ela precisasse de tempo pra nascer e viver na minha cabeça. Reverberar. Ela responde que sim, pergunta se eu vou na chuva mesmo. Digo que vou. Ela ri.
Minha cabeça gira um pouco. Mais cedo lembrei de vinho. Vinho chileno. Dois dias atrás de quando escrevo, já se fazem cinquenta anos do golpe do Allende. Chamei uma menina pra sair uma vez. Falei que tinha vinho chileno em casa. Vinho e camarão. Não dá pra esquecer do camarão. Deu errado, obvio. Foi tipo o pior convite de encontro da vida. Aliás, faz tanto tempo que não tomo vinho, ou até que bebo, ou até que saio. O tempo parece ter se achatado. Uma queimadura de luz sobre nitrato de prata. Fotografia.
Ser universitário e liso não tem me caído muito bem.
Chego no poleiro de onde voam os ônibus. Do meu lado, canta um artista de rua desafinadíssimo. Consigo quase ver as notas saindo no ar e sendo raio. O violão é bem tocado até. E não faz mal, é música. E música é música, e música é sempre festa. Tem um senhor do lado dele. Magrinho, magrinho. Serve quase de animador daquela plateia, um brincante. Pede palmas, canta um inglês inventado, infla os passantes com gracejos e palavras. Os dois não se conhecem. Uma garotinha vem de mãos dadas com a mãe, coloca uma nota de dois no chapéu do artista e se ri inteira, junto do mundo ao redor. O animador da plateia pede um pink floyd, e faz uma guitarra invisível com as mãos. O tocador ri. "Na próxima, vai. Na próxima"
"Na próxima, na próxima vai. Na próxima, na próxima vai" O microfone tem uma espécie de pedal, efeito, que dobra a voz do músico, faz um eco. Minha cabeça vai rodopiando como uma pedra caida do topo de um morro, e sobe no ônibus sem meu corpo. Ele parece ter ficado. Eu pareço ter ficado. Preciso de sono. Sono e colo.
De sono, de colo e de samba.