A menina do Rio
Uma das experiências mais traumáticas que vivi, teve por cenário um rio (penso
que rios são recorrentes em minha vida, talvez por amá-los tanto) e esse rio em especial
eu posso dizer que conheço bem. Tem a nascente, onde aflora, em um local paradisíaco,
corre livre, porém, rapidamente encontra seus degradadores naturais e então, o lixo e o
esgoto, uma infinidade de lixo e de esgoto, especialmente doméstico, passa a fazer parte
do seu, digamos, “corpo líquido” que já não é tão líquido assim!
Vigiei esse rio que passou tanto por mim.
Vi na sua rolagem tudo que um rio maltratado leva: sofás velhos escangalhados,
geladeiras sem porta, semidestruídas. Televisores em ruínas, camas, tapetes furados,
milhões de garrafas plásticas, cachorros mortos com a barriga inchada ou até mesmo sem
barriga que os urubus já tinham dado sua valiosa contribuição ao meio ambiente. Ah, e
vi uma menina morta!
Como, uma menina morta? Sim, mas essa o rio não levava, a pobrezinha estava
encalhada na sujeira lateral, entre cabos, garrafas pets enlameadas, pedaços de madeira
apodrecidos. Restos.
Por esse tempo, eu estava em uma indústria localizada às margens deste rio – veja
que o rio nada tinha em relação à indústria, apenas do pátio da indústria era possível ver
o rio – era área pública, o rio, e em suas barrancas fervilhavam barracos de uma favela,
mas isso não queira necessariamente dizer, claro, que a menina fora “descartada” na
favela, o rio também passava em áreas ditas - por falta de uma nomenclatura melhor -
nobres, portanto, o ponto de origem pode ter sido qualquer local, cabia agora, depois de
notificados, aos órgãos públicos investigar isso.
A descoberta foi assim: uma senhorinha da limpeza, extremamente simpática, por
sinal, no primeiro horário, me procurou “seu Luiz, tem uma boneca jogada no rio, parece
boneca, mas, pode não ser boneca, sei lá, algo me diz que não é boneca, sou mãe e sinto
que tem alguma coisa errada”. Pronto, acendeu uma tocha de preocupação.
Essa “boneca” está se mexendo, pergunto eu?
Parece que não, responde ela; e lá fomos nós, na dúvida, convidei, pelo rádio, um
bombeiro – civil - para nos acompanhar.
Da margem, visualizamos a pretensa boneca e, providenciada uma corda (um
cabo, para bombeiro corda é outra coisa, “puxar corda”, por exemplo, era situação que,
exceto os cachimbos, ninguém queria; o termo correto é cabo), amarrada a uma pilastra
com um bem feito nó de escota dobrado, lá se foi o bombeiro aproximar-se daquela que
poderia – ou não ser uma bonequinha. Era! Ou antes, tinha sido, posto que agora ela, a
garota (era uma garota) sua alma repousava em outras paragens – espero, celestiais - às
quais temos dúvidas e mais dúvidas, nenhuma certeza (que me perdoe quem tem certeza,
eu gostaria de ter, mas inda perdura em mim algo indefinível que me recuso nomear como
dúvida). Bom, mas nosso amigo bombeiro – bombeiro, não importa quem, não importa
se civil ou militar, é sempre amigo; penso que, guiadas por Deus, as melhores pessoas
que temos representando a Raça Humana optam sempre pela carreira de bombeiros, é um
traço de dignidade - cuidadosamente foi descendo preso à corda (cabo) e se aproximou
da boneca, que agora já tínhamos certeza, era uma garotinha – morta!
Em um gesto extremamente delicado - utilizando luvas, máscaras e tudo mais que
se fazia necessário para garantir a Segurança / integridade dele, bombeiro – retirou das
águas extremamente sujas aquele corpinho pequenino que subiu pingando água suja dos
cabelos, das roupinhas destroçadas, da boquinha arroxeada. Era como se toda a vida
tivesse, neste instante, perdido o rumo, o sentido, o interesse e, penso que se nós – eu, o
bombeiro e a senhorinha – tivéssemos morrido naquele instante, atingidos por um raio
fulminante (ou se surgisse um antieu – como proposto por Stephen Hawking – de boa
vontade eu lhe apertaria a mão e desapareceríamos ambos em um grande clarão de luz),
sei lá, talvez não tivéssemos sofrido tanto; esse momento simplesmente deixaria de existir
e se apagaria de nossos olhos, de nossas lembranças, de nossas vidas, tanta dor!
Mas não, a vida seguiu em frente. Recolhida a menininha (que depois um médico
identificaria como recém-nascida, pois que ainda tinha traços do cordão umbilical
extremamente mal cortado), nós a colocamos sobre folhas de jornal na calçada e
acionamos a Polícia que a partir de então o caso já era pra ser tratado em outras instâncias.
Sem mais nada a fazer, exceto burocracia, retomamos a rotina, nunca mais.
Nota: texto publicado originalmente no livro "Um jeito novo de viver" (ASIN : B08RHF1LQZ)