Autobiografia, que estória é essa?
Um amigo querido que participa de um grupo de leitura interessante, disse que em dado momento, foi instalada certa discussão quanto a uma obra ser ou não uma ficção. A autora em questão, teria feito uma espécie de autoficção quanto sua biografia. Ernaux, seria a autora sob análise.
Autoficção? Que é isso? Seria basicamente, uma estrutura narrativa e uma autobiografia ficcional. Mas esse seria o conceito que Serge Doubrovsky teria cunhado o termo para tal gênero literário por volta de 1977. Ah... mas é dificílimo, ao menos para mim, resistir a essa tentação do real e da ficção. Costumo navegar na terceira margem do rio, já que "divêrjo".
Toda vez em que vejo discussões adentrarem com certa seriedade quanto ao gênero literário de uma obra, se ficção ou não, costumo olhar para meu relógio pregado no pulso e pensar que em outro continente, meu horário é uma mentira. Ficção ou verdade? A depender do lugar, nem mesmo estarei no mesmo dia; noutros, nem sequer no mesmo século, milênio. Vide o calendário Chinês.
Borges, em texto sobre o Quixote, precisamente o intitulado Magias parciales del Quijote, foi, para variar um pouco, brilhante em sua percepção. Disse ele:
"[...] Por que nos inquieta que o mapa esteja incluído no mapa e as 1001 noites no livro das Mil e uma noites? Por que nos inquieta que dom Quixote seja leitor do Quixote e Hamlet espectador de Hamlet? Creio ter dado com a causa: tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios. Em 1833, Carlyle observou que a história universal é um infinito livro sagrado que todos os homens escrevem e leem e procuram entender, e no qual também eles são escritos."
E devolvo a batata quente a você, leitor. Ao fim, todos somos uma imensa ficção de nossa realidade? Eu prefiro não me levar tão a sério a ponto de crer que o que eu seja, não passe de uma ficção. Mas sobre as autoficções, quem sabe confessar nossa história em estória, seja a real forma de estarmos autores de nossa própria ficção da realidade.
Quem era Quixote senão Cervantes, solapado pelas agruras de seu tempo. Quem era Adrian Leverkühn, senão a agonia fincada nos olhos afiados de Mann? Admiro os que não temem sonhar e pensam que a ficção se trata de terreno manso, da imaginação. Onde não seria propriamente a realidade; estando aí a fronteira de gêneros literários. Por isso admiro tamanha coragem daqueles que gozam o fantástico da imaginação com leveza, colocando-se diante de tamanha realidade de nossa própria ficção imaginada. Quem dirá então que não vive e habita na sua própria ficção? Quem somos nós ao outro, senão nossa versão inacabada de autobiografia ficcional?
Ao fim, com um pouco de fé, mesmo nossa realidade, quem sabe, seja real. E nós, ao fim e ao cabo, sejamos leitores de nós mesmos, por nossas personagens perdidas no tempo.