Rosa sozinha não faz buquê

Por que motivo será que alguém corre assim com um buquê nas mãos? Já são quase sei lá, nove da noite. Tinha que chegar a tempo em algum lugar? Ia fazer um pedido desses romântiquinhos, se atrasou, e então mandou mensagem dizendo:

"Espera, não sai daí, tenho uma coisa"

A "uma coisa" era então todo o ritual, o drama, o abraço, o eu te amo, o pra sempre...

Ganho uma maçã.

A maçã não está farelenta, pelo contrário, está docinha. Como é próprio das boas maçãs. Mainha as cortava em quatro partes, descascava, insistia pra que eu comesse. Lembro dela, de mãe. Fazia tempo que eu não comia maçã. Ela me apazigua um pouco a fome, mas só um pouco. Penso sobre as maçãs não tão doces. Tadinha delas, negadas o direito de ser algo para alguém. Não, não, pelo contrário. Vai ver, elas é quem são livres, existindo num sem fim de outros futuros que não só o de serem devoradas.

O dia parece gigante, insistente em não acabar

Amarrei uma fitinha rosa na cadeira antes de sair de casa, um presente. Dei várias voltas nela para que não soltasse. Sou bobão assim com presentes.

Chihiro me tira um sorriso falando de rosas. Como pode escrever tão bem o Miyazaki? Ouvi dizer que ele não escreve. Pensa primeiro nas imagens. Ouvi dizer também que ele tem problemas com o filho. Será que é da essência dos gênios ter problema assim? Ir malfazendo as relações?

Penso um pouco, acho que discordo da pequena Chihiro quando ela diz sobre rosa sozinha não fazer buquê.

O diálogo é assim

CHIHIRO

Que falta de sorte, o primeiro buquê de flores que ganhei foi de despedida.

MÃE

Mas e aquela rosa que você ganhou no seu aniversário, esqueceu?

CHIHIRO

Era uma rosa só. Uma rosa não é um buquê.

Imagine só, coitada da rosa, ter que abrir mão da sua sozinhez pra se fazer inteira, toda vez. Claro, tadinha, também compartilho a chateação de Chihiro. Nunca recebi ou dei uma rosa sequer, quiçá um buquê inteiro.

A música me organiza de novo o mundo, Bethânia recoloca as palavras no lugar, minha boca está seca, a fome cola o estômago, o giro me deixa tonto, tontinho. Estou quase voltando pra casa, estou quase chegando.

As sextas sem feriado tem uma estranheza especial. O mundo inteiro parece estar fora de tempo. Os corredores são uma eterna meia-luz, um assombro. O dia começa estranho, chove.

Seu cheiro está em todas as suas coisas, a proximidade é quase um veneno.

Atrás de mim, já de noite, corre um homem com um buquê, apressado. Acho graça da coincidência. Sou bobão assim também com coincidências. Tento ver do que eram as flores, mas ele vai súbito, desaparece. E ai já imagino toda uma estória do motivo desse rapaz cruzar a noite assim, que nem raio.

O amor não espera.

É um alumbramento.