QUASE JUBILADOS

Com a aproximação do jubileu de ouro de minha formatura em Engenharia pela UFPR, sinto-me razoavelmente confortável para narrar uma ocorrência cinquentenária, pontual e histórica, protagonizada pelos calouros do curso, na década de 1970.

O Centro Politécnico havia sido implantado no bairro Jardim das Américas, na cidade de Curitiba, e nossa ida diária às aulas exigia duas viagens. Como a primeira aula começava às 7:30 h, éramos obrigados a acordar às 6 da madrugada para nos aprontarmos, devorarmos alguma coisa e pegarmos um coletivo, do bairro ao centro. Em seguida, precisávamos optar entre o ônibus azul da engenharia com seu simpático castor estampado na carroceria (procurei fotos no Google mas não encontrei absolutamente nada) e o ônibus amarelo da linha Jardim das Américas, no qual sempre realizávamos uma sofrida viagem, em pé e espremidos. Em que pese a segunda opção ser evidentemente a pior, tornava-se obrigatória quando, em consequência de desventuras noturnas, a gente perdia a hora de acordar e saía tarde de casa. Como o ônibus azul já havia zarpado, gazear a primeira aula era inevitável, porque pegar um taxi nem pensar, em razão do elevado preço; e desconsiderando aquelas raríssimas manhãs que nossos pais acordavam esbanjando boa vontade e fazendo questão de nos levar, restava-nos tão somente a alternativa de recorrer ao sempre entupido busão ‘Jardim das Américas’ onde, sonolentos e amassados, padecíamos mais de meia hora pra chegar ao Politécnico e enfrentar as demais aulas do dia.

Via-de-regra, os calouros começavam bem o ano, estudando varonilmente e obtendo boas notas; mas no decorrer dos meses o desempenho descia ladeira abaixo, porque o primeiro ano era bem puxado e – dito com franqueza - extremamente chato, visando quase que somente reforçar a base de conhecimento dos alunos e desenvolver seu raciocínio matemático. Assim sendo, somente a partir do segundo ano é que a coisa ficava interessante, quando iniciava pra valer o ensino da engenharia. A consequência disso tudo era que dezenas de calouros se desinteressavam das matérias e se complicavam com notas baixas, ficando em ‘segunda época’ em uma ou mais matérias, e caso não passassem nas provas, herdavam as ditas ‘dependências’ (matérias a serem recuperadas no ano seguinte), sobrecarregando perigosamente a sua grade curricular.

Terminara o ano letivo; passara Natal, Ano Novo e o mês de janeiro. Milton, nobre e coceba colega do primeiro ano, havia regressado de imerecido descanso na praia com a família, e aconteceu de ter esquecido - vejam só - a data da prova em ‘segunda época’ de uma das matérias mais detestadas. Na fatídica madrugada do dia 29 de janeiro, chegou em casa sonhando com os lençóis macios da sua idolatrada cama, quando tocou o telefone. Pensou em se fazer de surdo, mas atendeu – até hoje não sabe por quê. Era o Bide, seu colega de turma, querendo saber como ele iria para a prova, já na próxima manhã. –“Prova? Que prova? Bide, tem certeza de que é amanhã? Nem lembrava...”. –“Milton, seu muquirana, não acredito que você não tá sabendo...putzgrila, cara, você vai ser jubilado se pegar três dependências. Ju-bi-la-do!!! A menos que...”. _ “O que vc disse???”. _”A menos que vá até a casa do Duque, sim, o pessoal foi pra lá, parece que alguém da equipe do Bassetti passou umas dicas e a turma tá lá, decorando as respostas. Piá, ‘podes crer’...é tua única chance..!”.

Fã de carteirinha do velho e combatido ditado ‘quem não cola não sai da escola’, Milton nem cogitou deixar de ir. Precisou de meia hora pra tomar um banho, comer algo e se vestir. Bide chegou com seu DKW Vemag marrom e branco com motor envenenado e cabeçote rebaixado, suspensão uma volta e meia cortada, pneus faixa-branca, cinturão no capô e escapamento kadron. Saíram os dois voando baixo, rumo à casa do Duque. Realmente, lá estavam quase ‘trocentos’ colegas, que haviam montado um verdadeiro QG (quartel-general), copiando, recitando e decorando as respostas das questões da prova a ser enfrentada logo no início da manhã. Milton entrou ligeirinho na dança, mas não sem antes perguntar como havia ocorrido aquele verdadeiro milagre de as questões caírem assim do céu, de bandeja, de mão beijada._”Foi o PNC (não me perguntem o nome que não vou entregar) que passou a primeira questão pra um, pra outro disse que iria cair uma questão da página 42, pra outro contou que seria pedida a demonstração de um teorema, e pra outros mais deu dicas variadas, procurando não deixar vestígios de ter fornecido ajuda a quem quer que fosse. Só que a esperta gurizada da engenharia foi armazenando todos os dados e conseguiu montar a prova!”.

A primeira e única vez na vida que Milton tomou uma ‘boleta’ foi naquela ocasião, caso contrário não suportaria permanecer acordado até a hora do exame. Ele e os seus colegas ficaram em vigília, lendo e relendo tim-tim por tim-tim das questões, até chegar o alvorecer. Em seguida, dirigiram-se à ‘câmara de gás’ (salão de provas) do Politécnico, ligaram o piloto automático e deixaram a esferográfica surfar no papel pra registrar todas aquelas complicadas letras gregas e fórmulas quilométricas que haviam passado a madrugada inteira decorando.

O resultado da prova deveria ter saído em uma semana, mas demorou quase um mês. Nenhum dos calouros tirou dez. Nenhum pegou dependência...