SERENDIPIDADE: O HIATO DA PEDAGOGIA DO ACASO

Serendipidade

Classe gramatical: substantivo feminino

Separação silábica: se-ren-di-pi-da-de

Ato ou capacidade de descobrir coisas boas por mero acaso, sem previsão.

Circunstância interessante ou agradável que ocorre sem aviso, inesperadamente; casualidade feliz.

Não fosse minha inconteste teimosia ou ainda em crer no apoio de algumas pessoas, não estaria escrevendo. Aliás, não estaria alfabetizado. Já se perguntaram que ato de amor é alfabetizar alguém? É como revelar um segredo que muitos sabem, mas você está de fora. Apenas crendo no que lhe dizem.

E esse é o paradoxo. Para você saber por si, é preciso aprender a saber por outrem. Tive a minha maternidade literária extensamente povoada por mulheres que mudaram minha vida. Creio que até hoje estou envolto nesse útero das letras, em constante gestação de ideias.

Mesmo assim, habitei o espaço em branco do silêncio aos 16 anos. Passei cerca de 10 anos sem escrever uma linha sequer de qualquer tipo de literatura. Foi meu longo hiato. Qualquer dia conto como foi o retorno.

Ditongamente, poderia de perguntar desse período incompleto: vi-tó-ria de uma introspecção? Ao certo não sei. Revelar a mim mesmo a entrada da vida adulta não foi bem um evento. Frutas verdes também amadurecem à força. A velha incontrolável força da vida, faz-nos habitar no recôndito espaço da liberdade em estarmos fincados em nós mesmos.

Esse seria então o preço da liberdade? Uma espécie de liberdade assistida por um Eu interior? Ou, quão – tritongo; adoro a fonética dessa palavra: tritongo – encaixotado talvez tenha sido perceber a liberdade numa adolescência silenciosa, com barulho das coisas falsamente óbvias, montadas em elmos e espadas de mentira. Mesmo assim disseram-me: lute, cavaleiro! Meu alazão existia somente em minhas vontades. Permanecia a maioria das vezes completamente estático.

Aprendi nas aulas de física que isso se chamava inércia. Em geometria, dentre triângulos equiláteros de bonitos ângulos simétricos, eu talvez me desse melhor com a polifonia angular do triângulo escaleno. Escola... tempo em que fui desajustada-mente aparando as arestas da-transição-de-meu-tempo-de-garoto.

– Agora você já está um rapaz, hein! E as namoradinhas?

Quem nunca ouviu algo do tipo? Mas a escola tem disso. A escola foi uma residência inconteste em minha vida. Não contem isso aos Foucaultianos, por favor!! Mas a escola marca desde minha primeira palavra lida, ao primeiro verbo escrito; até o primeiro beijo e o coração partido da despedida de amigos.

A expectativa de conhecer os que estavam chegando; a espera do retorno das aulas para contar das férias. Naquele tempo analógico que foi a infância por ali, até 2006. Bilhetinhos e coisas escritas na agenda. Se hoje comprar balas para alguém é bagatela, naquela época – agora começo a entender o peso dessa expressão – era um ato fortuito de amizade e carinho. Selava-se paz e amor com pequenas balas de caramelo.

Mas acredito também, que tornar-se algo exige tempo próprio... acredito que se aprende a formatar personagem à altura das interações exigidas da vida ao longo dos anos; dos sorrisos ensaia-se para a plateia de casa e no final, abre-se o espetáculo! Aí é esperar a reação da plateia nas ruas, bares, trabalho. Uns vão vaiar... outros aplaudir; tantos outros serão indiferentes. E é assim. Sem “era uma vez”, mas sendo agora a única vez possível.

É de encabular quando se percebe que é-se adulto mesmo enquanto criança, mas não se sabe. Sorrateiramente vão dando pistas do que acontecerá e cabe você a juntar os pontos, um a um. Claro: não se é bobo! Ao menos, ninguém acha isso. E sem mais ou menos, vê-se em problemas que antes via nas rugas de seus pais, tios e quando se assusta, você agora é o pai ou mãe. Ali, no café posto à mesa, em casa, no microcosmo da vida que acontece como um supletivo do cotidiano. E nada disso é por acaso.

Lembrei disso ao lembrar de minhas aulas de português. Redundância que sempre esqueço de esquecer. Juntar as sílabas era de uma magia incomum. Logo as figuras ganhavam nomes, cores. Ali que azul virou azul, com nome e tudo. Logo parecia banal aqueles fonemas escondidos no papel, ao que já no final do ensino fundamental, não raras vezes era constantemente advertido pela professora sobre minha indisciplina.

UÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓóóóónn

A sirene dos intervalos e términos das aulas. Dias em que esse som era libertador; hoje, lembrança. Certa vez, estudando os encontros vocálicos, tive enorme empatia pelo hiato.

A ideia de um encontro entre dois semelhantes; a possibilidade de duas vogais, separando-se ainda que numa mesma palavra, perpetuassem sentido, encantava. A mesma palavra com iguais que se separam. Parecia trama de livro. Eu naquele tempo era como um peixe: indomesticável, mas num aquário; num curso d’água inexistente em que o cardume rumava em velocidade absurda. Eu era anacrônico e, veja, talvez ainda seja.

Mas se por um lado minha rebeldia remetesse a uma certa atenção bovina às aulas de gramática, muitas vezes resumidas a repetições de lições do livro, sentia-me vivo como poucas vezes, quando à minha frente era dado a desbravar algum enredo.

Seja história ou estória, bastava a coisa existir para que a curiosidade viesse. Nunca fui bom executor de repetições sem antes ser convencido daquilo ou entender os motivos, ao que, ao menor sinal de imposição fria contida em interjeições, por mais sorrateiras que fossem, tornavam meu olhar opaco e passava o restante da aula escrevendo e lendo o que gostava, escondido entre os livros da matéria.

Tive a sorte – ou o acaso? – de numa dessas trocas de professores, ter uma professora de literatura que, diante de minha terrível indisciplina, sorriu para mim. No começo era:

– Simon, Simon... pare de conversar na sala... vai atrapalhar seus colegas.

Passou em alguns meses a ser em caminhar discreto à minha mesinha:

– Simon, o que você anda lendo?

Era nosso segredo. Essa minha professora talvez tenha sido minha primeira confidente. Escrevia de tudo de maneira misturada; caótica; sem forma ou beleza. Minha estética era o nu; O mundo que via, nu. Aliás, até hoje habito nesse lugar de prática esquisita em não conseguir uma definição muito certa do que resolvo escrever. Porta aberta onde ao mesmo tempo de realidade, cabe como num abraço gostoso, o campo aberto da literatura. Sem amarras.

Ela lia minhas coisas e, em verdade, aquelas aulas de redação revelavam em meus códigos nada binários de grafia, ainda que pela via da ficção, minha coleção de bichos fantásticos, lugares imaginosos, diálogos tristemente reais por personagens inventados de algum lugar de minha cabeça.

Minha professora não raras vezes ria; corrigia incongruências gramaticais etc. Canetinha vermelha melhor pontuando e comentando termos. Acredita que assim aprendi o que eu lembro de gramática? Ênclise, próclise e mesóclise aprendi dessa forma. Mas que monossílabos tônicos terminados em U não se acentuam, eu aprendi ao .... deixa para lá isso. O que interessa, é que Ela respeitava minha potência tritongal; meus momentos de ditongo; meu silêncio de hiato.

Minha gratidão hoje esbarra nessa saudade que me apertou o peito enquanto suspirei lembrando de suas palavras em sala de aula. Ô, minha professora querida. Que saudade. Hoje nem sei bem se eu fazia redações de verdade ou se trocávamos cartas. Eu e minha amiga professora de literatura. Serendipidade e vem à mente aquele encontro mútuo de almas sensivelmente diferentes.

No primeiro dia de aula, ela já se apresentou de modo que me arrebatou no mesmíssimo instante:

— Crianças, meu nome é Gizele! G de girafa, Z de zebra e L de leão.

E assim nunca esqueci seu nome. Para sempre marcou minha memória. Depois somou-se a Elisângela, Fernanda a Cymara. Sou incapaz de esquecer e, como prova cabal disso, é que se hoje insisto em escrever, tenho em minha ficção particular as leitoras onipresentes que acompanham dentro de meu peito cheio de memórias.

A todos os professores, adjetivo que confiro a quem muda a realidade sem uma única bala; a vocês que movem mundos; fazem de pedras, castelos; meu muito obrigado. A Serendipidade de tê-los em minha vida é atemporal. Nessas coisas, não há tempo certo. Acontecem. Ninguém mais é anacrônico.

Simon Lima
Enviado por Simon Lima em 04/09/2023
Código do texto: T7877974
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