INERTE(S)?

Lá está o corpo inerte sobre o chão. Estendido, de papo pro ar, como se descansasse. O eterno descanso que esperam os que creem.

Morto? Com certeza, mas ninguém se detém para verificar. Nenhum médico de plantão, de passagem pela cena para atestar a causa mortis. Nada de jornal a cobrir o rosto com a foto de um gol. Não veio camelô vender perfume barato ou o decantado churrasquinho de gato. Se havia porta-bandeira, sambou em outra passarela, à distância dali.

Passaram, indiferentes, pela vítima:

- o homem elegantemente vestido, com pinta de empresário ou executivo bem-sucedido, cujo semblante destoa, no entanto, do seu traje, ao revelar o brilho do suor na testa. Fica a dúvida se estaria preocupado com os negócios ou se apenas sucumbe ante o calor já reinante naquela hora da manhã;

- os operários, uns apressados para chegar ao trabalho, outros em passo mais moderado, com ar sério, como a matutar como pagariam as contas do mês. Alguns, de perfil engajado, buscam a quem entregar o último panfleto do seu sindicato e reforçar as palavras de ordem aprovadas em assembleia (não é o caso, evidentemente, do corpo estendido no chão);

- estudantes que falam das provas, próximas e passadas, das festinhas da véspera ou do onipresente futebol. Parece até que um deles viu aquele figurante inerte e comentou algo com os colegas, que não lhe deram atenção, porém. A bem da verdade, nem ele fez caso do que teria dito;

- donas de casa e domésticas em seu constante lamentar pelos preços abusivos dos mais variados produtos;

- policiais, fardados ou não, que relatam os mais recentes episódios da violência e da criminalidade urbanas, sem aí incluir, contudo, aquela evidente ocorrência.

O corpo permanece no local, imóvel, ignorado, sem que qualquer transeunte revele maior interesse em desvendar a causa do crime. Mais um caso de assalto, possivelmente, mas também pode tratar-se de vítima de ato passional, de ajuste de contas ou de mera queima de arquivo. Tampouco se descarte a hipótese de morte natural, súbita, desprovida da oportuna assistência, como tanto ocorre, infelizmente. Um tipo vem andando, às vezes até assoviando, contente, quando de repente o coração ou outro órgão vital falha. Um ente a mais que se extermina e passa da seção dos vivos à dos mortos.

De quem a culpa pela indiferença que cerca aquele corpo inerte? Para começar, do próprio ente inanimado: fosse uma personalidade e certamente contaria com fãs, assessores, guarda-costas e fotógrafos a circundar o cadáver. Não seria este seu caso. Faleceu em estado de mediocridade, alheio ele próprio ao mundo e às demais pessoas que o rodeavam. Foi mais um dos que acreditam que cabe a outros indagar-se dos rumos do ser humano, participar e tomar decisões.

Sim, olhando melhor, não há somente um corpo inerte, estendido no chão. Aqui e acolá, muitos outros, de todos os tamanhos, idades, sexos e cores, jazem de igual modo. Enquanto ali permanecem, estáticos, incapazes de agir/reagir, criminosos andam à solta, a cometer assassinatos contra o diálogo e o convívio, além de intimidar para que prevaleça a indiferença conivente com o derramamento de vidas, com ou sem sangue. À solta? Talvez nem tanto, embora tal hipótese contestadora não sirva como consolo. Os criminosos constroem suas próprias prisões, onde vigora uma só lei, seja moral, ideológica, financeira ou de qualquer natureza. Falta código penal contemporâneeo para punir quem impõe muros tão sectários ao conjunto da humanidade.

Ali resta(m) aquele(s) corpo(s) inerte(s) a estender-se pelo chão frio dos ausentes, à espera quiçá de novos detetives, poetas ou pensadores dispostos a investigar os crimes que determinadas mortes escondem e, com sublime esforço, resgatar as consciências perdidas...

Agosto 2018.

Divulgaescritor, Coluna do Autor, junho 2019.

A presente versão (agosto 2022) foi objeto de alterações em seu final.