O Guarda-Chuva, a Galocha e o Banho de Poça

Num desses dias em que o céu resolveu desabafar suas mágoas, eu me vi preso em meio a uma chuva intensa e incessante. O guarda-chuva, velho companheiro de batalhas, já não oferecia a proteção que um dia prometera. As gotas se infiltravam impiedosas, como se a água quisesse me lembrar que nenhuma barreira é eterna.

Lá estava eu, caminhando pelas calçadas encharcadas da cidade, cada passo um desafio, cada poça d'água uma tentação irresistível. E foi assim, movido pela urgência de algo que há muito esquecera, que decidi abraçar o caos que era o meu trajeto.

Os carros passavam apressados, seus pneus lançando respingos d'água sobre quem se aventurava a enfrentar a intempérie. Mas foi nesse momento que algo inesperado aconteceu. Um carro, um desses modelos antigos, diminuiu a velocidade e parou ao meu lado.

O motorista, um senhor de cabelos grisalhos e olhar sereno, estendeu a mão para fora da janela e ofereceu-me uma galocha. "Parece que você está precisando disso mais do que eu", ele disse com um sorriso. Aceitei o presente de bom grado, agradecendo com os olhos marejados pela gentileza inesperada.

Continuei minha caminhada, agora com os pés protegidos da água que teimava em desafiar o asfalto. As ruas estavam desertas, como se a chuva houvesse afugentado todos os transeuntes. Era como se o mundo tivesse dado uma pausa para assistir a essa dança entre homem e chuva.

E então, não sei se por impulso ou nostalgia, parei diante de uma enorme poça d'água. Olhei para o reflexo distorcido do céu cinzento e sorri. Com um pulo, mergulhei de corpo e alma naquela poça, como se estivesse reencontrando um velho amigo de infância.

Foi um banho de poça, daqueles que a criança que fui um dia adoraria. Rindo, encharcado até os ossos, percebi que as escolhas que fiz ao longo da vida me trouxeram até este momento. Cada passo, cada desvio, cada erro e acerto, tudo contribuiu para moldar o ser que sou hoje.

Olhei para o guarda-chuva inútil que ainda segurava e o deixei escapar, levado pela correnteza. Às vezes, precisamos abandonar as proteções que já não nos servem para abraçar o desconhecido, para sentir a água gelada em nossa pele e lembrar que estamos vivos.

O senhor de cabelos grisalhos me alcançou novamente, desta vez com um sorriso cúmplice. Ele entendeu que a vida é feita de escolhas, algumas nos protegem da chuva, outras nos levam a abraçá-la. E naquele momento, entre a galocha, o banho de poça e o carro gentil, eu escolhi dançar na chuva, mesmo que por alguns instantes.

Bernardo Reis
Enviado por Bernardo Reis em 04/09/2023
Código do texto: T7877613
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