Mais um gole
“Quem descobre a fonte nunca mais vai a um copo d’água”. Devo ter visto esta frase (se não exatamente assim, muito parecida em seu teor) em algum livro de provérbios ou quem sabe em um velho conto russo do século XIX, talvez saído da fala de alguma personagem de Dostoiévski ou Górki, visto o meu fascínio pela literatura da terra de Púshkin, Gógol e dos Czares mais terríveis: a mãe Rússia, como é chamada por muitos dos seus nativos.
Uma das principais qualidades que caracterizam um bom jornalista é a checagem de dados, ainda mais no mundo atual, onde as Fake News brotam sem parar nesse solo fértil da globalização digital. Mas, e na literatura, qual a importância de checarmos o texto diretamente vindo do autor ao invés de aceitarmos as opiniões de terceiros, como a de outros escritores ou críticos literários?
Você deve estar se perguntando se é realmente possível fazer esse tipo de analogia, já que as Fake News surgem por meio de uma má fé da parte do disseminador da mentira e a crítica de uma obra artística advém de um julgamento de estética literária. Mas, pode acreditar, sejam por motivos explícitos ou inconscientes, muitas opiniões sobre livros ou qualquer outra obra de arte já nascem com uma disposição contrária ou a favor, como George Orwell tenta nos mostrar no seu ensaio “Lear, Tolstói e o bobo”, no qual o escritor inglês discorre sobre os motivos que Tólstoi tivera para rebaixar, de uma maneira surpreendentemente descabida, segundo o autor de 1984, o conjunto da obra teatral de Shakespeare. Eu já li o ensaio no qual Tólstoi desfere sua crítica ácida em relação às peças do dramaturgo elisabetano, como também, não faz muito tempo, acabei de ler o ensaio de Orwell, onde este dá a sentença de “inocente” à Shakespeare. E agora, quem está certo quanto à obra shakespeariana, Orwell ou Tolstói? Para chegarmos à uma conclusão, temos que fazer o que foi proposto logo acima, isto é, irmos diretamente aos textos de Shakespeare. No meu caso, admito, com certa vergonha, que nunca li nenhum texto ou assisti a nenhuma encenação do, considerado por muitos, maior gênio da arte, em todos os seus aspectos. Contudo, posso relatar a experiência que fiz com Virgílio.
Há uns dois anos atrás, li A Divina comédia, de Dante. O magistral poema do poeta florentino não me encantou apenas pelas suas características estilísticas, como a composição dos versos em Terza Rima, uma simetria quase matemática no encadeamento dos tercetos dantescos, ou mesmo pelas imagens criadas, principalmente as do inferno, mas o que me chamou muito a atenção foi a presença de Virgílio como guia de Dante no inferno e no purgatório. Além de guiar Dante no submundo, Virgílio serve como modelo de poeta épico, o grão-mestre de Dante na arte literária.
Passado algum tempo, me veio às mãos a obra “A morte de Virgílio”, de Hermann Broch. Sobre este livro, mal tenho palavras para descrever a beleza contida em cerca de suas quatrocentas páginas. Broch usa a técnica de escrita chamada Fluxo de Consciência para criar um texto filosófico, existencial e metafísico, em uma prosa poética rica, que reflete a mente atormentada do personagem principal, o poeta romano autor das Bucólicas, das Geórgicas e da Eneida, em suas últimas dezoito horas de vida, no palácio do imperador Otaviano Augusto, em Brindisi, antiga cidade do império romano, na atual Itália. Após entrar em contato indireto com Virgílio, através de Dante e Broch, resolvi fazer o tal experimento da fonte e li a Eneida, poema épico que gira em torno da figura de Eneias, um herói troiano que sobreviveu à Guerra de Troia e inicia uma jornada beligerante para encontrar um novo lar para seu povo. E valeu cada verso, afinal, Virgílio nos legou uma obra fascinante. Entre as muitas qualidades da Eneida, podemos destacar a humanização dos personagens: ao contrário dos heróis homéricos, os personagens da Eneida são mais complexos e humanizados. Eneias, por exemplo, é retratado como um herói com dúvidas e conflitos morais, o que o torna mais acessível ao público, além de a obra abordar temas épicos, como a honra, a bravura, a lealdade, o destino, a intervenção divina, a fundação de uma nova cidade (Roma) e a busca por um propósito divino.
Claro, esta fonte não é a da mais límpida e pura água, em razão de os textos não terem sido lidos em suas línguas vernáculas, como o italiano, na Divina comédia, ou o latim, na Eneida, mas pelo menos assim não morremos de sede nesta época de aridez e aquecimento global literário.