Os 50 anos de O exército de um homem só, de Moacyr Scliar

 

Li esse livro lá por 1998, muito por influência da canção homônima dos Engenheiros do Hawaii, nele inspiradas. Antes, havia lido do Scliar O anão no televisor (1979) e, depois de O exército..., Uma história farroupilha (2004) e Max e os felinos (1981). Por outro lado, batia ponto em suas crônicas publicadas no jornal Zero Hora, textos de alto padrão e com muitas dicas sobre os mais diferentes assuntos.

 

Ao escrever a propósito dos 50 anos de O exército de um homem só, publicado em agosto de 1973, e seu personagem principal, o idealista caricato Mayer Guinzburg, rebelde socialista apelidado de Capitão Birobidjan, filho de um casal de judeus que moravam no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, aterei-me ao escritor nesta breve crônica, por um simples motivo: Scliar, já membro da Academia Brasileira de Letras, esteve em 2006 palestrando no II Sarau Literário de Charqueadas, esbanjando humildade, simpatia, simplicidade, cultura e inteligência, ensinando muito para os literatos locais naquela oportunidade. Assim, aproveitando a efeméride literária, abordo esse aspecto que remete à Charqueadas e à região Carbonífera e que é algo diferente de tudo o que se está falando e discutindo neste momento sobre o livro e seu autor.

 

Uma prova do tipo de homem e ser humano que Moacyr Scliar era podemos ver no episódio envolvendo Max e os felinos. Em 2002, o escritor canadense Yann Martel foi acusado de plagiar a obra de Scliar no livro A história de Pi. Primeiramente, negou, depois recuou e disse que melhorou um livro ruim de um autor brasileiro, inspirando-se no mesmo. O gaúcho manteve a classe e a grandeza durante todo o tempo, bastando para ele o reconhecimento de Martel, o qual não processou. O canadense acabou por agradecer Scliar no prefácio de sua obra.

 

Por esses fatos é que nós da Associação de Literatura de Charqueadas - ASLIC ficamos bastante sentidos quando de sua morte em 2011. Assim, nada melhor pra falar sobre isso do que o texto "Adeus, Scliar", do jornalista e cronista charqueadense Rodrigo Ramazzini, que republico abaixo, eis que nunca é demais recontar essa história. Sobre O exército de um homem só, fica apenas a recomendação: leiam esse livro, ele é muito bom, um verdadeiro cinquentaço literário. Vocês o encontram em qualquer biblioteca e, no caso de Charqueadas, existem alguns exemplares na Biblioteca Municipal Vera Gauss.

 

Adeus, Scliar - Os bastidores de um encontro

 

Conheci pessoalmente o escritor Moacyr Scliar no ano de 2006. À época, eu era presidente da Associação de Literatura de Charqueadas e o traríamos ao município para realizar uma palestra durante as atividades do Sarau Literário daquele ano. Como ocupante do cargo, coube-me acompanhar o carro que buscaria o escritor na capital para fazer-lhes as honras da casa. Antes da curta viagem, liguei para o meu amigo João Soares para contar-lhe sobre a realização do evento, bem como do futuro encontro com o Scliar. Lembro até hoje das palavras do “Joãozinho”: “cola nele e “chupa” todo o conhecimento que conseguires dele. O Scliar é uma pessoa sensacional!”. Depois descobri que o João tinha toda a razão.

 

Nervosismo à parte, o primeiro contato com o escritor aconteceu na entrada do seu prédio, em Porto Alegre. Com um sorriso no rosto, ao ver-me gritou “fala, mestre” e cumprimentou-me com sua singular simpatia. A partir daí, comecei o que posso classificar como uma verdadeira “guerra”, pois iniciei um bombardeio de questões sobre todos os assuntos até retornarmos para Charqueadas.

 

Durante o trajeto de volta descobri porque o escritor era admirado não só por sua obra, mas, também, como ser humano. Com simplicidade, paciência e bom humor, Scliar ia sanando todas as minhas dúvidas e orientando-me como um bom professor. Um dos ensinamentos carrego vivo até hoje: a valorização dos leitores. Parece óbvio isso para quem escreve. Porém, não é. Tratar cada leitor como um ser único e mostrar-lhe gratidão por ele “gastar” seu tempo lendo os textos deve ser algo sempre que possível demonstrado. É o que eu tento fazer quando há qualquer tipo de manifestação nesse sentido.

 

Logicamente, sou mais um dos admiradores do trabalho do Moacyr Scliar. Possuo vários livros do autor, mas tenho um apreço pela obra “O exército de um homem só”. A qualidade e a quantidade da sua produção literária são impressionantes. Dizia ele que escrevia uma coluna de jornal em 20 minutos. Sinceramente, não consigo imaginar como isso é possível, tendo como base que, às vezes, demoro horas para escrever meia dúzia de linhas.

 

Voltando a palestra, em Charqueadas. Já durante o evento, nos sentamos ao lado um do outro. Com um Solar Shopping lotado, ele começou a falar e a encantar quem estava lá assistindo. Poucas vezes vi uma platéia prestar tanta atenção no que uma pessoa falava. Era um silêncio só. Depois de mais de uma hora de conversa, o Scliar agradeceu a presença de todos e me passou o microfone, questionando-me baixinho “E aí, o que achou?”. Embevecido com tudo e surpreendido pela pergunta em um tom de impressionante humildade, apenas tive a reação de convocar uma salva de palmas, o que foi realizada por todos em pé.

 

Após atender os leitores, autografar vários livros e uma breve paradinha na praça de alimentação, era hora de fazer o caminho de volta para Porto Alegre. Foi o momento da vingança do Scliar contra mim. Com os papéis trocados, ele que começou a me encher de perguntas. Fez isso, na maior parte do trajeto, com uma incomum curiosidade.

Já na capital, com cordiais palavras escreveu uma dedicatória e deu-me um autógrafo. Despedimos-nos. Dois dias depois me enviou um email comentando um dos meus textos que acabara de ler. Novamente, utilizando afetuosas e generosas palavras.

 

Essa afabilidade era a marca de um homem interessado e maravilhado com o cotidiano de pessoas comuns, como eu. Foi uma experiência e um contato que durou pouco tempo, mas que deixará os rastros e os ensinamentos para o resto da vida.

 

Obrigado por tudo e adeus, Scliar!

 

Postado por Rodrigo Ramazzini às Segunda-feira, Fevereiro 28, 2011